sábado, janeiro 12, 2019





                 A Joana Maluca a mais benquista das gafanhoas...



(Cont)


4- E tudo começou na Gafanha da Gramata O demiurgo Fernando Camelo
Referimos acima ter o Conde Aveiras, Senhor de Vagos, detido o Senhorio das marinhas da ilha da Mó-do-Meio, Preguiceiro, e outras, sitas na orla norte das Gafanhas. Terá enviado (ele ou o seu representante Sebastião da Fonseca), em 1677, foreiros seus para aquela zona. Ao referirem em documento coevo esta decisão, acrescenta-se que por ali já haveria terras de pam. Então, temos de convir (por esta referência inequívoca) ter já aquela zona lagunar sido objecto de ocupação permanente, em data anterior. Pouco anterior, porventura. Certo é que tudo o parece indicar.




A carta que indicamos abaixo, representando o litoral cerca do Séc. XV, mostra, embora numa representação aligeirada, uma língua de areia. Note-se que YLauo (Ílhavo) vem grafado no seu modo original, o que permite assumir data anterior da carta ao século referido da sua execução. A língua de areia ainda não estaria completamente formada. O que é indicado como o Forte é, claramente, o Forte Velho (frente à Quinta do Inglês). É ainda muito curiosa esta carta, pois a representação do porto de Portomar, uma quase circular reentrância, é das mais precisas, ao tempo.
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Carta litoral ant. ao Séc. XV
Já na representação a seguir elaborada e aqui mostrada, carta do início do Séc. XVII, poderemos apreciar que, quer na beirada Norte, quer na de Poente, há já traço de existência de vegetação nas zonas perto da linha de água (certamente juncais, gramatas).
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No mapa apresentado na página anterior está bem assinalada a ilha da Mó-do-Meio. É visível uma zona, onde se dá ao terreno uma definição parecendo assinalar já as terras de cultivo. O mesmo sucede com toda a zona ribeirinha, um pouco a Norte do Forte Velho.
Em outra carta que representa a ligação ao mar, da laguna, situada bem perto de Mira (de facto a ligação mais a Sul da história lagunar), é já nítida a enorme quantidade de leiras entregues a foreiros.
Podemos pois fixar o período imediatamente anterior a 1677 (onde são feitos vários aforamentos), até ao Séc. XVIII, a janela temporal de chegada de foreiros por aqueles terrenos, que, entretanto, teriam deixado de pertencer ao Senhor de Vagos, pois este vendera-os a Rangel de Quadros, governador da Barra e da Alfândega (uma sua filha casa com Eng.o Oudinot). E este, por sua vez, tê-los-á vendido a Francisco Camelo. E, por herança, os mesmos passaram à posse de Fernando Camelo, seu filho.
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Numa sentença referida pelo P. Resende, na sua excelente «Monografia das Gafanhas», indica-se que, num aforamento realizado em 1813, por João Lopes Ferreira, era referida a quinta de Fernando Camelo como sendo constituída por “uma fazenda que consta de casas, currais, palheiros, terras de pam, praias e juncais”.
Por esta altura temporal, aquela área, hoje chamada de Gafanha da Encarnação, para a distinguir da outra Gafanha sita à beira do canal que ia para Aveiro (Cale da Villa), era designada, ainda, por Gafanha da Gramata.
Uma maneira de a identificar era pela quantidade apreciável de juncos existentes na praia, factor primordial para com eles fazer camas nos currais de gado e atapetar o chão das palhoças dos foreiros, nesses primeiros tempos muito primitivas, quase pré-históricas.
Terá sido, pois, Fernando Camelo quem descortinou o tesouro escondido naquelas terras, que ao primeiro olhar desatento, pareciam inóspitas. Para lhes dar forma de terrenos produtivos, era preciso um trabalho estafante, surribadelas sucessivas. Eram necessários muitos braços, muita vontade humana, muita teimosia, muita fortaleza de alma, muito sacrifício. Fernando Camelo, homem de largos cabedais, proprietário de vários solares agrícolas, sitos em várias partes nas imediações de Aveiro (Feira, Vale de Ílhavo, vila de
Ílhavo etc. etc.), teve por ideia que só distribuindo as melhores glebas aos seus foreiros os poderia interessar, cativar e fixar. E assim os terrenos foram demarcados em sucessivas leiras, no sentido Este- Oeste, praticamente perpendiculares à ria, com a qual do Poente confrontavam. As crastas onde medravam herbáceas, fenos, juncos e outras, que se estendiam pelas lombas que o vento depositava naqueles areais, transformaram-se de maninhos em terras de cultivo farto. O virar de página do Séc. XVIII dá-nos uma ideia de uma Gafanha povoada já de pequenos telhados ocres a substituir o colmo, dando um carácter mais colorido ao desabrigado daquelas terras. E, pouco a pouco, mais tarde de forma intensa, foram pintalgando de um modo impressivo o ambiente geográfico. Casinhas distribuídas, primeiro ao deus-dará, ao gosto e conveniência de cada foreiro, mais tarde alinhadas com os caminhos das carroças da lavra e passadas de pessoal, indiciando um começo de burgo urbano. E, assim, em 1800, a Gafanha da Gramata era já densamente povoada, graças aos esforços e decisões pragmáticas e cheias de interesse do seu (assim se pode apelidar), demiurgo Fernando Camelo.
E os foreiros atiraram-se à faina. E foram à ria e trouxeram o moliço e o escasso. E esparralharam- nos sobre aqueles campos alagados, engordando-
os, fertilizando-os, transformando terrenos rotos em terras férteis. Atiraram-se a eles de enxada a abrir o rego, difícil de suster na forma, pois, cavadela dada, logo a areia pouco consistente esboroava de novo, escorregando até ao fundo. E era preciso voltar a cavá-lo... Uma... duas... as vezes que fosse preciso para dar guarida fértil à semente. Ao princípio, a plantita que surgia teimosamente debaixo da terra parecia enfezada. Mas o homem não desistiu de defrontar o meio e nele intervir. Sob abrasadora torreira do sol, ou sob inclemente água despejada do céu, o homem não desistiu. Ano após ano, teimosamente, insistiu. E a enfezada plantita ia rompendo, cada vez mais forte e direita às alturas. Entre desilusão e esperança, com o passar dos anos, ganhava forma de planta enverdecida, cada vez mais entroncada e viçosa, até que, parecendo milagre, aqueles acastanhados campos alagados, ao princípio terra de ninguém, vêem-se cobertos por uma onda de verdura estonteante. O “tesouro” tinha sido encontrado, aberto e distribuída a espórtula. E a riqueza daqueles terrenos explodiu em toda a grandiosidade, verdadeiras terras de pam como poucas existentes neste País – o gafanhão tinha vencido.


5- A Gafanha da Gramata vira Gafanha da Maluca. E acaba sendo, Gafanha da Encarnação.


Esta designação deve-se ao relevo que Joana Rosa de Jesus teve, e transmitiu, nesta parte das Gafanhas.
Joana Rosa era natural de Ílhavo. Filha de António Fernandes Cardoso e de Luiza Francisca. Desde o seu nascimento (1788), veio viver com seus avós, na Gramata. Já acoutados em leiras aforadas, certamente a Fernando Camelo.
Curiosamente, a mãe de Joana tinha já o apelido de “Gramata”, o que poderá indicar que, ela também, era já proveniente (nascida) na Gafanha da Gramata.
Ora por estas terras, pastoreava o gado, um tal José Domingos da Graça (filho de António Graça). Em 1804, este Graça, natural de Calvão, pagava contribuição das suas terras, fosse em Vagos ou em Ílhavo. Sendo que aqui pagava o maior valor (indiciando ser um foreiro próspero). António, como quase todos os foreiros, era provindo da beirada da Gândara. Do Seixo e outros locais (a grande migração no Séc. XVII e Séc. XVIII, deu-se, da Gândara para os areais da Gafanha). Os gandareses eram gente da lavra, já com farta experiência de trabalho em campos arenosos. Eram conhecidos por marronteiros, procuradores de terras férteis para pastorícia, e outras actividades agrícolas. Gente irrequieta, de grande mobilidade, sempre em procura de novos locais onde exercer a sua actividade original.
José Domingues (natural de Calvão), passou a rondar a porta de Joana, a fazer-lhe rapapé e, em 1808, os dois contraíram matrimónio.
Deste casamento nascem seis filhos (o último será uma rapariga, a Ana Gramata, que casará com Manuel Oliveira Arrais. Darão origem à família Arrais). Daqueles seis filhos, Joana terá 66 netos! A esplêndida prole, é pois, digna de ser considerada uma das bases do povoamento da Gafanha da Gramata. A influência desta mulher acolhedora, boa conversadeira, caridosa, gostando de receber com lhaneza em sua casa, vai ser decisiva para identificação futura da área. Assumindo com orgulho a alcunha do marido – O “Maluco” –, torna-se, ela, um ícone local, conhecida para sempre, por Joana a “Maluca”. E daí, toda aquela área, até ali designada de “Gramata”, passará a ser conhecida como Gafanha da Maluca.
Joana e o marido, José Domingues – o “Maluco” – herdeiro de António, tornam-se co-foreiros do juncal da ilha do Preguiceiro, e assim aumentam a sua casa agrícola. Fazem copiosa fortuna.
Morre cedo o Domingos.
A prole é grande, a precisar de Pai que ajude no trabalho e educação dos filhos. Joana irá contrair segundo matrimónio com António Santos Pata. Bom homem, de quem não virá a ter mais filhos. E será com ele, António, que Joana Maluca, virá a ser co-foreira, agora da Quinta-do-Mato-do-Feijão.

Joana era uma mulher sensível. Tinha um tom de voz algo varonil, mas melodioso. Talvez um pouco ingénua. Cantava versos de muito folguedo e prazer, recebendo opípara e hospitaleiramente os seus convidados, fossem, nobiliárquica ou intelectualmente importantes, distintos, mas de igual modo, os menos importantes. Simples amigos dos amigos convidados. Para todas crescia a simpatia de Joana.

José Estêvão era um natural e assíduo convidado. Trazia com ele figuras ilustres da política e das letras, nacionais, levando-os, de barca,
a conhecer os prazeres gastronómicos da mesa farta de Joana. E no final, estômagos mais do que aconchegados, bem fartos, era romançosa a digestão, feita á sombra do alpendre, em descontraída charla. Postados em letárgica tardada, frente à ria, confortavelmente instalados em convidativas espreguiçadeiras, baforando os excelentes havanos  sempre presentes na mesa de Joana, iam chalaceando sobre os últimos acontecimentos politiqueiros. Joana era uma contumaz fumadora dos ditos, enquanto dizia solene:
- olhai amigos que a politica nunca matou a fome ao Povo. Só as batatas são capazes de o fazer. Esses “plingrinos” da palavra, que venham, que me falta cá gente...
Pela quinta de Joana passaram ilustres homens de influência pátria: Mendes Leite, Freitas de Oliveira, Sebastião Lima e Agostinho Pinheiro. Entre muitos outros.
O intenso relacionamento e a cativante atitude desta interessante, como interessada mulher, foram decisivos para obter a atenção e influência de José Estevão, na abertura das estradas do Forte Novo a Aveiro (1865), passando pela ponte do Canal de Mira. Nela vinha entroncar, perto da Cambeia, a estrada vinda da Gafanha da “Maluca” que o político com a sua influência, dava como prenda a Joana. Veremos que, mais tarde, José Estêvão vai estar, e influenciar também, o esforço da construção da ponte de Juncal-Ancho, e posteriormente  da estrada Ílhavo-Bruxa (Gafanha da Maluca – 1898-1900).
Se António Camelo foi o demiurgo da Gramata, bem se pode dizer, ter sido Joana Rosa, a inegável povoadora (colonizadora) da “Maluca”.
Joana terá uma vida final junto dos netos. E desejosa de aumentar a sua capela privada, contribuiu com terrenos, verbas e alfaias, para a construção da Capela primitiva da Gafanha da Maluca, devotada à Nossa Senhora da Encarnação (1848).
E assim, a Gafanha da “Maluca” toma o nome da padroeira. E passa a designar-se, oficialmente, aquando da anexação administrativa, Gafanha da Encarnação.
(Cont)
SF







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