Joana “Maluca”
A mais benquista das gafanhoas.....
(gravura – Fernando José)
Introdução
A Gafanha
da Encarnação, terra de historial
ainda criança, mas nem por isso menos rico, tem hoje uma expressão humana de claro significado e importância. Nela habitam gentes descendentes de outras gentes, que, teimosamente, suaram as estopinhas a defrontar o áspero
meio onde queriam,
com perseverança, afundar
raízes, atirando-se, cavadela a cavadela,
ao regueirão. Foram
muitas as vezes, as necessárias para o
não deixar esboroar, a fim de, no
seu ventre, aconchegar a semente,
que, ao princípio, brotada da terra
gafa, crescia tímida e enfezada, mas,
foi assim que século volvido,
se mutou a paisagem
numa planície esverdejante, dádiva de fértil mãe.
Para fixar data ao aparecimento quase milagroso deste
novo pedaço de areal, lodoso e encharcado, que pareceu, ao princípio, sobrante, não erraremos (muito), se dissermos
não andarmos longe dos tempos em que D. Afonso Henriques irrompia com as suas gentes, Douro abaixo, a perseguir
os Serracenos.
Por data que antecedeu
um pouco o nascimento pátrio,
como por milagre, o mar afastou-se, deixando,
lenta mas continuadamente, surgir das suas entranhas umas terras lamacentas, moles, desinteressantes, pouco convidativas,
em que ninguém ousou, sequer, nelas deter o olhar e muito menos satisfazer a cobiça.
As Gafanhas inserem-se numa língua de areal de cerca de 25 quilómetros de extensão
por aproximadamente 5 quilómetros de largura.
São limitadas a Poente e Norte pela
ria (canal
de Mira); e a Nascente pelo canal do rio Boco. A Sul, por uma hipotética linha que, iniciada
nos cardais de Vagos, vai morrer no lugar do Poço da Cruz (Mira).
Podemos arriscar
que terá sido só a partir do século XIII (quando o cordão do litoral estava já bem perto da Torreira) que os altos fundos lodosos, saídos do leito da ria, despertaram alguma atenção,
ou simples curiosidade experimental... Certo: os mesmos
só ganhariam alguma
consistência e utilidade depois
de 1500 dC, já o cordão arenoso teria avançado
até à latitude
de Aveiro. E só então
o homem olhou e remirou,
cobiçoso e ambicioso, para aquelas
terras, que o Senhor
dos mares lhe oferecia. Terá sido precisa
alguma imaginação e muito optimismo
para nelas descortinar o tesouro precioso,
que, como tesouro que se preze de o ser, estava bem escondido
no ventre daqueles
lodaçais. Com ónus duro: para deles tirar posse e proveito, era necessário estar constantemente a corrigir
as cãs, que ventos
e marés
lhes desenhavam no dorso. Era vê-los,
corpos atolados, ajoujados até ao joelho, num esfalfe constante a empenharem-se, compulsivamente, numa luta contra o meio geográfico, que teimava em desfazer o que há pouco se tinha feito. Era um
trabalho extenuante e suado, de enrugar rosto e a alma,
para lhe revolver as entranhas húmidas,
enxugá-lo, para logo em seguida o engordar, num surribar extenuado, fixando-o com vegetação
rasteira a fim de lhes fornecer húmus suficiente, para que, acolhida
a semente, desta brotasse caule fibroso
que se visse. As terras, ao princípio
inóspitas, onde apenas medravam umas herbáceas
raquíticas, foram-se transformando em glebas
vivas, produtivas, quase luxuriantes, brochando a paisagem
de um verde esplendoroso, estonteante, a perder de vista na planície funda. E onde ao princípio haveria
gramata e junça a crescer pelos pauis formados
junto das beiradas
lagunares, logo aqueles se transformaram em juncais
anchos. Mais dentro,
cresciam enfezadas
e raquíticas vergônteas surgidas no lodaçal. Depressa porém surgem vegetação forte, flora viva, fértil campina, prado viçoso a regalar a retina, tal a frescura mostrada.
Curiosamente, as gentes das redondezas (Ílhavo e de Aveiro)
não se teriam mostrado muito atraídas
em dispostas a investir
de enxadão em punho contra
aquela imensidão crasta. Por isso, só inicialmente, dobrado o século XV, algumas marinhas que foram possíveis circundar de torrão no extremo Norte do areal, para lhes prender as águas e delas fazer nascer
o sal, cativaram
gentes daquelas bandas para a actividade salícola, actividade
vinda de séculos já então (muito) longínquos (pelo menos desde 929, como o prova o testamento da Condessa
Mumadona Dias ao Mosteiro de S. Salvador de Guimarães), que se tornou o principal desaforo capaz de cativar, motivar e atrair
gentes vindas de outras
bandas numa corrida
ao ouro branco.
Foram pois esses marnotos os primeiros
a dar os passos pelos crastos de areia, na ida e vinda
para as marinhas,
sitas no extremo norte da língua
de areia posta a descoberto.
Todo o imenso terreno que se estendia a Sul e Sudeste parecia
terra (de interesse) para ninguém,
um tesouro escondido
(ou adormecido?) de que nenhuma gentiaga,
ao princípio, parece ter dado conta, bem como das possibilidades nele contidas de se transformar em mar de pão.
2--- De onde vem o nome de Gafanha?...ou melhor, de Galefenha....
Têm feito correr
muita tinta, exercitado (e exorcizado) muitas
mentes arribadas a historiógrafos, a proveniência e o significado do termo,
hoje comum – Gafanha(s). Em nossa
opinião (já assumida
no livro “Ílhavo-Ensaio Monográfico- Séc. X ao Séc. XX”), deveria antes ter, isso sim, ser fixado como Galefenhas.
Vejamos os passos da estória....
Mentes criativas
atiraram-se à hipótese,
fácil e indutora,
de que Gafanha
teria sido local para onde se enviavam
os gafos, os leprosos, portadores de doença terrível,
porque, sendo fatal
para o atingido, causava
medonha vista ao transeunte que com o pobre enfermo se cruzasse. Asseguravam os percursores e mantedores de tal crisma que a existência deste lugar de morte
não seria nada de estranho, pois ali perto, na Tocha, haveria historial da existência de leprosarias.
Esqueceram-se os ditos nomeantes de que não há documentação, nem sequer notícia alguma de tal sucedâneo,
nem o mínimo vestígio de por aqui terem passado portadores da terrível
enfermidade. Acresce para mais que gafaria, etimologicamente, nunca daria Gafanha, asseguram
os especialistas da língua portuguesa.
Que as Gafanhas, ao início, seriam planícies de todo inférteis, arenosas lamaceiras, terras nascidas do mar, terras de exílio,
e que tal poderia ter sugerido, terras de gafos, é possível
e até viável. Mas tais terras depressa
mostraram rebentos
por onde despontaram uns verdes juncais, que iriam ser uma das primeiras riquezas exploradas pelos primeiros foreiros que, aqui chegados,
logo se mostraram dispostos a mudar a
paisagem, entregando-se a todos
os sacrifícios e agruras, para entregar aos seus filhos as mais ricas terras de pam do futuro concelho. Se tal anátema
tivesse o mínimo fundo de verdade,
estas terras continuariam a ser terras de ninguém.
E daquela ideia, diga-se nada abonatória, saltou outra,
que teria estado,
segundo outros de fértil
imaginação, na base da denominação Gafanha. A palavra gadenha,
alfaia mais tarde muito usada e comum no gadanhar das junças e gramatas
que naqueles pântanos
logo vingaram e cresceram, dando precioso alento aos primeiros arroteadores, foi novel
sugestão para crisma,
dito bem apadrinhado. Junças que, rocegadas para alimento
do gado, fomentavam extensa área de pastorícia, nelas se ia gadanhar,
cortar junco com a foice, chamada
gadanha. Daí,
explicam os ditos estudiosos, por corrupção, teria nascido
o termo gafanhar.
Para os povos ribeirinhos de Ílhavo e Vagos, era fundamental o precioso junco.
Os terrenos ainda hoje denominados de Juncal Ancho (onde fica a segunda ponte que liga as Galefenhas a Ílhavo, pois a primeira
ponte, estava, cerca de 100m a Sul, da actual), eram um vasto e prenhe alforge
de verdejantes junças. Do outro lado (Gafanha
de Aquém), e provavelmente mais para Poente, nas beiradas da hoje Gafanha
da Encarnação, terão surgido iguais, fartos e apetecíveis, juncais. E as gentes, tendo por costume juntarem-se para em grupo irem colher os mesmos
– sugeria quem assegurava
a evidência (?) – terão corrompido o termo gadanhar
– colher junças – pronunciando-o gafanhar. E daí as gafanhas… local onde se ia gafanhar.
Esgotadas estas imaginativas incursões, parece-nos sensato que outros tentem explicar o que durante tanto tempo foi matéria inconclusiva.
Ora haveria outra maneira de lá chegar: mais lógica e com melhores alicerces...
Vejamos:
Há, na geografia, um termo que designa as línguas de areia lodosas surgidas por acção natural:
as galefenhos. Esta
terminologia é vulgar,
comum, e desde a minha juventude foi-me mostrada por meu Pai, professor de História
e Geografia, que não percebia o porquê de, por aí, não se fazer caminhar a sugestão
de procura.
Admitimos, sem margem de dúvida, que Galefenhas seria o correcto
termo para designar aquelas terras, e Galefenhos, os seus habitantes. Identificação mais prosaica, mais bonita(?), mais doce, que a tradicional designação de gafanhões. No entanto estes não
enjeitam de modo nenhum esta última designação, antes se orgulham.
Quem manda é a tradição ancestral. Por isso respeitemos a escolha
da gíria popular.
3- Primeiros indícios de chegada de foreiros
Data da anexação
da Freguesia da Encarnação
à de S. Salvador.
Em documento
do Conde Aveiras,
Senhor de Vagos,
D. João da Silva Telo, refere-se
que teria enviado, em 1677, foreiros seus para
a
“galefenha”, muito embora sabendo que, já antes dessa data, haveria referências de nela existirem já terras de pam. No “Dicionário Geoghrafico Abbreviado das províncias
e Reinos do Algarve”, de Pedro Marques (como referimos
em “Ílhavo-Ensaio Monográfico- Séc. X ao Séc. XX”),
explica-se que a palavra galefenho
seria o composto de gala+fânia, ambas de proveniência
céltica, pretendendo significar (juncos,
região lacustre ou pantanosa, abundante em fânios,
juncos). A referência desses galefenhos, em 1853,
mas
no Concelho de Vagos, não nos parece trazer ou criar confusão impeditiva. Primeiro
porque há diversos
mapas coevos, em que aparece indicado
Vagos e não aparece citado, nem sequer referenciado, Ílhavo.
Ora, não podemos deixar de referir que, apenas em
21 de Março de 1835, foram as Gafanhas desanexadas do Concelho
de Vagos e logo integradas no Concelho de Ílhavo, administrativamente.
É natural, pois, que as informações colhidas se confundissem com a proximidade dessas datas. Para mais, a freguesia da Gafanha da Encarnação apenas foi anexada (à freguesia de S. Salvador)
em 1856.
Parece-nos, pois, ultrapassada a questão.
Mas certo é que, Gafanha,
e o gafanhão, seus habitantes, passaram a ser, para registo
histórico, os termos que as gentes fixaram,
e a história acolheu.
E gafanhões foram, no dizer de Frederico de Moura, todos aqueles
que investiram contra o inóspito meio, transformando-o a seu favor. E antes de cultivar a lomba, tiveram
de corrigir a sua esterilidade, servindo-se da Ria que lhe passa ilharga,
procurando nela a nata com que amamentou
a semente que deixou
cair.
Por isso, é consensual que muitos comparem as Gafanhas, à Holanda,
como foi o caso de Júlio Dinis, o qual assegurava ao amigo Custódio
do Passo imaginar-se, em 1864, transportado à Holanda
(citação Prof. Fernando
Martins em “Ílhavo Terra Milenar”). Claro: Júlio Dinis, ele próprio
o clarifica na missiva, nunca teria visitado a Holanda.
A comparação acudiu-lhe no célebre aforismo:
se Deus fez a Terra, os Holandeses fizeram a Holanda... Ora, pensaria (e bem!) Júlio Dinis: – e porque não, os gafanhões terem feito as gafanhas”?!..
E é que fizeram
mesmo!...
(Continua )
Senos da Fonseca
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