sexta-feira, janeiro 11, 2019


Joana “Maluca”
A mais benquista das gafanhoas.....


(gravura Fernando José)



 



Introdução



A Gafanha da Encarnação, terra de historial ainda criança, mas nem por isso menos rico, tem hoje uma expressão humana de claro significado e importância. Nela habitam gentes descendentes de outras gentes, que, teimosamente, suaram as estopinhas a defrontar o áspero meio onde queriam, com perseverança, afundar raízes, atirando-se, cavadela a cavadela, ao regueirão. Foram muitas as vezes, as necessárias para o não deixar esboroar, a fim de, no seu ventre, aconchegar a semente, que, ao princípio, brotada da terra gafa, crescia tímida e enfezada, mas, foi assim que século volvido, se mutou a paisagem numa planície esverdejante, dádiva de fértil mãe.
Para fixar data ao aparecimento quase milagroso deste novo pedaço de areal, lodoso e encharcado, que pareceu, ao princípio, sobrante, não erraremos (muito), se dissermos não andarmos longe dos tempos em que D. Afonso Henriques irrompia com as suas gentes, Douro abaixo, a perseguir os Serracenos.
Por data que antecedeu um pouco o nascimento pátrio, como por milagre, o mar afastou-se, deixando, lenta mas continuadamente, surgir das suas entranhas umas terras lamacentas, moles, desinteressantes, pouco convidativas, em que ninguém ousou, sequer, nelas deter o olhar e muito menos satisfazer a cobiça.
As Gafanhas inserem-se numa língua de areal de cerca de 25 quilómetros de extensão por aproximadamente 5 quilómetros de largura. São limitadas a Poente e Norte pela ria (canal de Mira); e a Nascente pelo canal do rio Boco. A Sul, por uma hipotética linha que, iniciada nos cardais de Vagos, vai morrer no lugar do Poço da Cruz (Mira).
Podemos arriscar que terá sido a partir do século XIII (quando o cordão do litoral estava bem perto da Torreira) que os altos fundos lodosos, saídos do leito da ria, despertaram alguma atenção, ou simples curiosidade experimental... Certo: os mesmos ganhariam alguma consistência e utilidade depois de 1500 dC, o cordão arenoso teria avançado até à latitude de Aveiro. E então o homem olhou e remirou, cobiçoso e ambicioso, para aquelas terras, que o Senhor dos mares lhe oferecia. Terá sido precisa alguma imaginação e muito optimismo para nelas descortinar o tesouro precioso, que, como tesouro que se preze de o ser, estava bem escondido no ventre daqueles lodaçais. Com ónus duro: para deles tirar posse e proveito, era necessário estar constantemente a corrigir as cãs, que ventos e marés lhes desenhavam no dorso. Era vê-los, corpos atolados, ajoujados até ao joelho, num esfalfe constante a empenharem-se, compulsivamente, numa luta contra o meio geográfico, que teimava em desfazer o que pouco se tinha feito. Era um trabalho extenuante e suado, de enrugar rosto e a alma, para lhe revolver as entranhas húmidas, enxugá-lo, para logo em seguida o engordar, num surribar extenuado, fixando-o com vegetação rasteira a fim de lhes fornecer húmus suficiente, para que, acolhida a semente, desta brotasse caule fibroso que se visse. As terras, ao princípio inóspitas, onde apenas medravam umas herbáceas raquíticas, foram-se transformando em glebas vivas, produtivas, quase luxuriantes, brochando a paisagem de um verde esplendoroso, estonteante, a perder de vista na planície funda. E onde ao princípio haveria gramata e junça a crescer pelos pauis formados junto das beiradas lagunares, logo aqueles se transformaram em juncais anchos. Mais dentro, cresciam enfezadas e raquíticas vergônteas surgidas no lodaçal. Depressa porém surgem vegetação forte, flora viva, fértil campina, prado viçoso a regalar a retina, tal a frescura mostrada.
Curiosamente, as gentes das redondezas (Ílhavo e de Aveiro) não se teriam mostrado muito atraídas em dispostas a investir de enxadão em punho contra aquela imensidão crasta. Por isso, inicialmente, dobrado o século XV, algumas marinhas que foram possíveis circundar de torrão no extremo Norte do areal, para lhes prender as águas e delas fazer nascer o sal, cativaram gentes daquelas bandas para a actividade salícola, actividade vinda de séculos já então (muito) longínquos (pelo menos desde 929, como o prova o testamento da Condessa Mumadona Dias ao Mosteiro de S. Salvador de Guimarães), que se tornou o principal desaforo capaz de cativar, motivar e atrair gentes vindas de outras bandas numa corrida ao ouro branco.
Foram pois esses marnotos os primeiros a dar os passos pelos crastos de areia, na ida e vinda para as marinhas, sitas no extremo norte da língua de areia posta a descoberto.
Todo o imenso terreno que se estendia a Sul e Sudeste parecia terra (de interesse) para ninguém, um tesouro escondido (ou adormecido?) de que nenhuma gentiaga, ao princípio, parece ter dado conta, bem como das possibilidades nele contidas de se transformar em mar de pão.


2--- De onde vem o nome de Gafanha?...ou melhor, de Galefenha....

Têm feito correr muita tinta, exercitado (e exorcizado) muitas mentes arribadas a historiógrafos, a proveniência e o significado do termo, hoje comumGafanha(s). Em nossa opinião (já assumida no livro “Ílhavo-Ensaio Monográfico- Séc. X ao Séc. XX”), deveria antes ter, isso sim, ser fixado como Galefenhas.
Vejamos os passos da estória....
Mentes criativas atiraram-se à hipótese, fácil e indutora, de que Gafanha teria sido local para onde se enviavam os gafos, os leprosos, portadores de doença terrível, porque, sendo fatal para o atingido, causava medonha vista ao transeunte que com o pobre enfermo se cruzasse. Asseguravam os percursores e mantedores de tal crisma que a existência deste lugar de morte não seria nada de estranho, pois ali perto, na Tocha, haveria historial da existência de leprosarias.
Esqueceram-se os ditos nomeantes de que não documentação, nem sequer notícia alguma de tal sucedâneo, nem o mínimo vestígio de por aqui terem passado portadores da terrível enfermidade. Acresce para mais que gafaria, etimologicamente, nunca daria Gafanha, asseguram os especialistas da língua portuguesa.
Que as Gafanhas, ao início, seriam planícies de todo inférteis, arenosas lamaceiras, terras nascidas do mar, terras de exílio, e que tal poderia ter sugerido, terras de gafos, é possível e até viável. Mas tais terras depressa mostraram rebentos por onde despontaram uns verdes juncais, que iriam ser uma das primeiras riquezas exploradas pelos primeiros foreiros que, aqui chegados, logo se mostraram dispostos a mudar a paisagem, entregando-se a todos os sacrifícios e agruras, para entregar aos seus filhos as mais ricas terras de pam do futuro concelho. Se tal anátema tivesse o mínimo fundo de verdade, estas terras continuariam a ser terras de ninguém.
E daquela ideia, diga-se nada abonatória, saltou outra, que teria estado, segundo outros de fértil imaginação, na base da denominação Gafanha. A palavra gadenha, alfaia mais tarde muito usada e comum no gadanhar das junças e gramatas que naqueles pântanos logo vingaram e cresceram, dando precioso alento aos primeiros arroteadores, foi novel sugestão para crisma, dito bem apadrinhado. Junças que, rocegadas para alimento do gado, fomentavam extensa área de pastorícia, nelas se ia gadanhar, cortar junco com a foice, chamada gadanha. Daí, explicam os ditos estudiosos, por corrupção, teria nascido o termo gafanhar.
Para os povos ribeirinhos de Ílhavo e Vagos, era fundamental o precioso junco. Os terrenos ainda hoje denominados de Juncal Ancho (onde fica a segunda ponte que liga as Galefenhas a Ílhavo, pois a primeira ponte, estava, cerca de 100m a Sul, da actual), eram um vasto e prenhe alforge de verdejantes junças. Do outro lado (Gafanha de Aquém), e provavelmente mais para Poente, nas beiradas da hoje Gafanha da Encarnação, terão surgido iguais, fartos e apetecíveis, juncais. E as gentes, tendo por costume juntarem-se para em grupo irem colher os mesmos sugeria quem assegurava a evidência (?) – terão corrompido o termo gadanhar colher junças pronunciando-o gafanhar. E daí as gafanhas local onde se ia gafanhar.
Esgotadas estas imaginativas incursões, parece-nos sensato que outros tentem explicar o que durante tanto tempo foi matéria inconclusiva.
Ora haveria outra maneira de chegar: mais lógica e com melhores alicerces...
Vejamos:
Há, na geografia, um termo que designa as línguas de areia lodosas surgidas por acção natural: as galefenhos. Esta terminologia é vulgar, comum, e desde a minha juventude foi-me mostrada por meu Pai, professor de História e Geografia, que não percebia o porquê de, por aí, não se fazer caminhar a sugestão de procura.
Admitimos, sem margem de dúvida, que Galefenhas seria o correcto  termo para  designar aquelas terras, e Galefenhos, os seus habitantes. Identificação mais prosaica, mais bonita(?), mais doce, que a tradicional designação de gafanhões. No entanto estes não enjeitam de modo nenhum esta última designação, antes se orgulham.
Quem manda é a tradição ancestral. Por isso respeitemos a escolha da gíria popular.


3- Primeiros indícios de chegada de foreiros

Data da anexação da Freguesia da Encarnação à de S. Salvador.
Em documento do Conde Aveiras, Senhor de Vagos,
D. João da Silva Telo, refere-se que teria enviado, em 1677, foreiros seus  para  a  galefenha”,  muito embora sabendo que, antes dessa data, haveria referências de nela existirem terras de pam. No “Dicionário Geoghrafico Abbreviado das províncias e Reinos do Algarve”, de Pedro Marques (como referimos em Ílhavo-Ensaio Monográfico- Séc. X ao Séc. XX”), explica-se que a palavra galefenho seria o composto de gala+fânia, ambas de proveniência céltica, pretendendo significar (juncos, região lacustre ou pantanosa, abundante em fânios, juncos). A referência desses galefenhos, em 1853, mas no Concelho de Vagos, não nos parece trazer ou criar confusão impeditiva. Primeiro porque diversos mapas coevos, em que aparece indicado Vagos e não aparece citado, nem sequer referenciado, Ílhavo.
Ora, não podemos deixar de referir que, apenas em 21 de Março de 1835, foram as Gafanhas desanexadas do Concelho de Vagos e logo integradas no Concelho de Ílhavo, administrativamente.
É natural, pois, que as informações colhidas se confundissem com a proximidade dessas datas. Para mais, a freguesia da Gafanha da Encarnação apenas foi anexada freguesia de S. Salvador) em 1856.
Parece-nos, pois, ultrapassada a questão.
Mas certo é que, Gafanha, e o gafanhão, seus habitantes, passaram a ser, para registo histórico, os termos que as gentes fixaram, e a história acolheu.
E gafanhões foram, no dizer de Frederico de Moura, todos aqueles que investiram contra o inóspito meio, transformando-o a seu favor. E antes de cultivar a lomba, tiveram de corrigir a sua esterilidade, servindo-se da Ria que lhe passa ilharga, procurando nela a nata com que amamentou a semente que deixou cair.
Por isso, é consensual que muitos comparem as Gafanhas, à Holanda, como foi o caso de Júlio Dinis, o qual assegurava ao amigo Custódio do Passo imaginar-se, em 1864, transportado à Holanda (citação Prof. Fernando Martins em Ílhavo Terra Milenar”). Claro: Júlio Dinis, ele próprio o clarifica na missiva, nunca teria visitado a Holanda. A comparação acudiu-lhe no célebre aforismo: se Deus fez a Terra, os Holandeses fizeram a Holanda... Ora, pensaria (e bem!) Júlio Dinis: e porque não, os gafanhões terem feito as gafanhas”?!..
E é que fizeram mesmo!...

(Continua )

Senos da Fonseca

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