sábado, agosto 10, 2019


«O BARATEIRO»




Em meados do século anterior, fizesse o tempo que fizesse –arrenegada transmontana bravia, ou  de cariz bem disposto, solarengo -, o Victor «Barateiro» palmilhava, quilometro a quilómetro ,freguesia a freguesia , rua a ruela esconsa, com a traquitana de madeira assente em duas rodas de bicicleta, na qual  transportava a mercadoria, percorrendo com o seu “estabelecimento comercial”todos os cantos da vila e arredores. Antecipação do hipermercado de hoje, com tratamento personalizado do freguês, servido porta a porta. Em passo ligeiro, fazendo lembrar os antigos almocreves,  anunciava em foghorn  improvisado, a sua chegada e a dos seus produtos, hiperbolizando as  virtudes da mercadoria, de um modo galhofeiro e atrevido.

Era o «Barateiro», o que vendia melhor e mais barato, as mercancias. No seu singular anúncio, muito antes da globalização de que nem sequer ouviu falar, dizia serem importadas da China -ou até da  Cochinchina –Índia, e outras que tais,a preços de arrasar. 

O Victor era uma figura de uma simpatia tal(!), que lhe permitia com a maior facilidade o contacto,e do mesmo, a aproximação capaz de facilitar a venda dos produtos com que porfiadamente  ganhava a sua vida .E tratou dela muito bem, pois clientes não lhe faltaram. Nunca.

«O Barateiro» era um homem baixo –um Charlot andante -, nariz saliente num rosto de onde emergiam umas arredondadas maçãs que lhe moldavam um sorriso permanente, conferindo-lhe ar de pessoa benquista .De chapéu com aba levantada - à patetive-, enterrado no cima da cabeça, vestia invariavelmente fatiota de ir « a ver o Senhor», caísse chuva ou fizesse canícula abrasadora. Tinha, naturalmente, tez muito morena, consequência da vida de andarilho das estradas e caminhos, batidos pelo Sol..

                           
                           
Quem atentasse no desempenho da sua missão mercantil, logo lhe descortinava a qualidade inata de um “vendedor de feira”, sabendo como poucos enliçar a clientela com conversa «fiada»,acompanhada por farta gesticulação com que  apresentava o produto, sabendo atribuir-lhe inesperadas vantagens, ou desconhecidas  qualidades.     
O Victor Malha «O Barateiro» padecia de uma certa gaguez. Mas tal empecilho não lhe complicava a tarefa. Antes pelo contrário, ajudava-o e de que maneira! Sabia utilizar bem esse pequeno problema em seu favor, exprimindo-se de uma maneira muito castiça onde não faltava forte dose de picardia e malandrice, utilizadas para criar uma proximidade  facilitadora do negócio.

Vinha ao longe, e de lá gritava, anunciando-se:

- Po…po…Povo!... oh… oh!  po…Povo«estúpido»! Ve…venham… a…a aqui, que bom e… e… ba…  barato, só  no..no «ba» ….«ba»…«Barateiro»


E continuava, no seu gaguejo

- Me..meias da  ca..cá.... casa baiona …que…que vão dos pés…. á borda da….co  co comprem minhas senhoras -alardeava sorridente o Victor ,agarrando um par de meias tiradas da carreta, esticando-as para cima e para baixo, e para os lados , para mostrar a  qualidade .Em passe de prestidigitação, fazia passar o gume da navalha por entre as meias, que pareciam ser rasgadas ,para logo serem mostradas ,impecáveis,sem mácula, perante o mulherio espantado ,interessado na sua compra perante tal milagre.

- Olhai !.. Povo .Na…não é a ga…galinha ,é…é  o Barateiro com soutiens Ma… Martelo …os q’a…q’aguentam, todo e qualquer, mar… mar...marmelo.
O Victor era um malandéu, gozador. E apreciador de boas moçoilas.

Na Costa Nova, em Outubro, época da clientela vinda lá das vindimas bairradinas - os Matolas - com dinheiro fresco no bolso, era zona predileta para o Victor exercer o seu mister .

O Victor inventava muitos truques com que chamava as clientes que circundavam o carroço do estendal, inquirindo dos produtos que o «Barateiro» tinha para oferecer :cuecas ,pijamas, camisas de dormir ,lençóis ,edredões ,toalhas e lenços  etc. etc. A que não faltava as «camisinhas sem mangas», um produto ao tempo difícil de encontrar nas lojas da zona. E para as habituais clientes, aqueles «pozas» do «Manelzinho»(da farmácia) para verter no café do« cara metade»,  capazes de fazer fervilhar os humores aos mais aquietados e o levar às performances há muito esquecidas. 

Entrevistei, conjuntamente com o Manuel Teles,no VIP-VIP de boa memória, o Victor. Foi impagável no desfilar de histórias que deliciaram uma sala apinhada, vertida em delírio com a graça portentosa de um inimitável contador de «estórias». A ponto de merecer referência no Diário de Lisboa, de então,que realçou o acontecimento. 
Entre outras, recordo a estória das cuecas untadas com vaselina, quando apregoava  :

-Olhai povo!...po…po…povo!... povo in…in…incréu: as cuecas «Amor»…q’a… q’a q’aguentam com… com todo o ardor, e…e… até,   qualquer odor “.
E rapando do isqueiro , chegava-lhes fogo .A vaselina ardia expelindo larga fumaça que  o Victor  logo apagava ,mostrando à clientela ,as cuecas, impunes às chamas.
-Po…po…podeis ter a pa… a pa…a pa…passarinha a arder.Com as calcinhas  «Amor», é um frescor …

Desfilou um cardápio das suas adiantadas técnicas de marketing.Por exemplo, quando  anunciava :
 
- Cu…cu…cuecas a cinco escudos o...o… par .A quem mas deixar vestir, q’u….  q’u …quatro pares, grátis! – atirava, ao tempo que lançava um  sorriso maroto a uma ou outra moçoila, mais vistosa, potencial interessada na transacção.

Ora um certo dia, palavra puxa palavra, gracejo puxa gracejo, uma bairradina mais atrevidota, de boas carnes e tempero ajustado nas mesmas, dá de o desquitar:

-Èh Ti Victor .É mesmo a sério ?... hóme !

-Se …se…se…é –responde mais gago do que o habitual, o Victor. E rapando das calcinhas, franqueada  a porta do palheiro, ali mesmo, atrás da porta, preparou-se para as  nadegar na Bernarda da Mamarrosa ,que atrevidota e ladina ,foi gozando :

-Eh Ti Victor!... vossemecê perdeu a fala ?

-Q?... antas p..per..  perder  a ..a… fala ,q’a …a… ser cego –responde o Victor mais entaramelado do que o habitual..

Nisto ouve-se grande restolhada. Era o pai da moçoila  que de   porrete  em punho, veio lá de dentro disposto a pôr cobro ao descoro .

Valeu –contou-nos o Victor - a calma da Bernarda, a demonstrar estar à altura (seria o hábito ?!) dos acontecimentos:

-Q’é lá isso meu Pai ?! O senhor Victor é bom homem, está apenas a tratar da greta do meu pé ,para ver se o tamanco me calça .

…po…po…pois …então .Ó… Ó .. Ti Zé ,c’olhe que …que.. a…a gre… gre…greta  da sua … ra….rapariga ,  pre…pre… precisa de…de… trato .Está muito aberta. Vou…vou dar-lhe um pó…pó… pozinho do Ma…Ma… Manelzinho da botica, que …que lha fecha.

 E lá se livrou de boa, o atrevido Victor .
Com os calcanhares molestando o dito, num ápice, desceu a correr a viela do Pardal, e dessa vez sem fala –  daquela vez a sério!...- foi direitinho à Mota, onde o Ti Ameixa o ajudou a carregar a carrinha das vestimentas. ”Toca a largar”,teria implorado o Victor ao arrais Ameixa, antes que o Ti Zé percebesse a conversa fiada, e viesse por aí, com a cachamorra empunhada..

Era um bom homem, o Victor. Gozando da simpatia das clientes que lhe ofereciam um copito em dia solarengo,ou um caldito em dia friorento .À porta do tasco ou do café, tinha sempre fiéis amigos, com quem se pelava para uma charla, desfiando o rol de nobidades, colhidas nas suas deambulações.

Assim era o Victor. Um excelente e virtuoso contador de histórias, uma figura típica, arquétipo de figura popular benquista, um esperto e bonacheirão vendedor ambulante, deliciosamente astuto, sagaz, pleno de matreirice. A calcorrear os caminhos lodacentos, ou a ouvir o chilrear da passarada. A lançar um olhar penetrante aos rústicos  que lhe saltavam ao carroço, ofegante no afã de uma vida suada de peregrinação junto das gentes de quem não gostava menos, mesmo que os apelidando, ternamente, de «povo estúpido».Talvez por saber que nele acreditavam piamente.

S.F             

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