terça-feira, maio 05, 2020

A pandemia de1755: muito mais letal,do que o Covid 19

O actual estado pandémico, esta mortandade todos os dias antevista e logo amanhã, dolorosamente assumida, esta permanente vizinhança  com o vírus letal, para nós se.... ou para um qualquer próximo, a impotência para dominar a onda invasora viral, não pode deixar de trazer à colação, e relembrar, a pestilência lagunar de 1755.
Provavelmente, as comunidades hoje alapadas à beira da Laguna, desconhecerão o então sucedido, com  uma dimensão trágica, proporcional, muito superior ao actual  ataque covidiano.
Vamos pois, em breve palavras, rememorá-la no essencial.

A laguna irrequieta e mutável, inconstante, com a abertura ao mar sita lá muito para sul, vizinha  de Mira, vinha dando graves indicações (desde o inicio do século) de doença terminal anunciada. A renovação das águas era já muito difícil. As marés já não  faziam  sentir na sua benéfica mutação, com força e intensidade aceitáveis, em muitos locais do norte  lagunar. A vida no  seu interior  dava clara mostras aceleradas  de um definhar próximo. Os movimentos de entrada e saída de embarcações, permitindo as transações comerciais, eram então muito difíceis. Ou até muito limitadas, praticamente impossíveis, devido às dificuldades de acesso a embarcações de maior calado. As “gentes” lagunares tinham já começado a perder a ilusão do benefício da “dádiva dos deuses” que, há quase dez séculos, a natureza tinha ofertado ao aprisionar no cordão arenoso do litoral, consentido, uma extensa área de águas serenas. Por vezes espelhadas, frescas, ciclicamente renovadas, promissoras de inesgotáveis e diferenciadas oportunidades.

Em 1755 verificou-se um período  chuvoso muito intenso, com o consequente engrossamento das águas dos rios e riachos ,então fortes no caudal volumoso de invernia despejado na Laguna .Com o cordão arenoso todo fechado,rapidamente, o aumento do nível interior lagunar  virou catástrofe.Com as águas apresadas, impedida a renovação, com a consequente perda da  oxigenação habitual, aquelas tornaram-se rapidamente salobras. Daí à sua total inquinação foi um passo.

Tudo o que a Laguna dava de promissor, teve fim. Morte irreversível. A Laguna estava ferida de morte. A mortandade tomou uma forma incontrolada que, rapidamente, se transformou em calamidade expressiva. O sal deixou de se poder fazer; ou, algum do que ainda era teimosamente feito, era um sal (?) preto , sem qualquer valor comercial. A fauna piscícola morreria por completo, asfixiada naquelas águas salobras. A actividade de pesca cessou, assim, por completo. Bem como as actividades complementares. Os moliços que os povos ribeirinhos cedo se aperceberam serem um fornecedor privilegiado de azoto aos terrenos encharcados, que gerações atrás de gerações, num  esforço amargo,  titânico, suado, na feitura do rego que facilmente se desmoronava, iniciam um claro e nauseabundo apodrecimento.
A pestilência irá provocar doenças infeciosas a que não se sabia, nem se tinham meios, para dar resposta. Os cadáveres amontoavam-se. Muitos corpos teriam  de ser levantados dos seus tugúrios, por bateiras.  Aveiro era então “ um inextricável labirinto de ruas angulosas e becos sujos, vielas sujas e torpes, escuríssimas, onde o ar não circulava  e a luz só pairava pelos cimos  e onde os despojos insalubres e hediondos se acumulavam livremente a céu aberto .
A mortandade era então medonha,  atingindo uma expressiva camada da população. Naturalmente, como sempre, incidindo expressivamente sobre a mais empobrecida, mais débil, com menos meios para uma higiene mínima. Para se ter ideia, só em Ovar a população estimada em cerca de 12.000 habitantes reduz-se a 3.000. Aveiro é violentamente afectada, e o espetro de destruição populacional, global, começa a tomar forma. Teme-se o pior. Os que podem fogem da Vila. Ílhavo, principalmente na zona de Alqueidão ( local onde era maior a concentração de pescadores e marnotos) é violentamente atingida. Globalmente tem-se uma noção que, mais de50% da população ribeirinha, terá sido, letalmente atingida.



Surge então(1756) a iniciativa de João Sousa Ribeiro, capitão-mor de Ílhavo. Irá reunir, perante a catástrofe, no edifício da Alfandega, os mais ricos e poderosos proprietários  sugerindo  uma contribuição para abertura de uma nova Barra(uma vez que os cofres camarários estão vazios e o poder central não tem mais recursos dos que os enterrados na recuperação de Lisboa, após terramoto recente).   


Palacete de Sousa Ribeiro em Aveiro(onde se veio a instalar o Governo Civil)


Não obtém uma única contribuição.  Decide avançar sózinho, não sem declarar alto e em bom som:  
(...)tomem em conta que Vos fica mais barato deitar fora uns aneis que os levar amanhã na mortalha que a terão por certa.. A obra vai ser feita. A expensas totais e únicas da casa dos Ribeiros da Sylveira, cujo fato sobra para tal monta. E que se mais curto ficar, os fundilhos são limpo ,asseados e honrados, para merecerem respeito. Meu filho: prepara os animai se ao raiar da aurora iremos à Coroa, pedir autorização para fazer a obra, inteiramente à nossa custa.
Em 1757, obtida a autorização, Sousa Ribeiro instala-se na Vagueira, recrutando à sua custa 200 trabalhadores, animais e carroças, no intuito de abrir um canal de 600 metros. Em Junho o canal estava praticamente pronto. Mas Sousa Ribeiro quer esperar por um forte tempo de chuva, de modo a elevar o nível interior, e rasgar o que falta,  provocando uma forte e larga abertura. E assim aguenta (e paga do seu bolso ) ao pessoal até ao dia 8 de Dezembro. Aproveitado um novo e grandioso período de chuva, que terá provocado um elevado nível interior (o mais elevado de sempre), manda romper o cordão. Logo as águas interiores,tumultuosas, forçadas pela  grande energia potencial acumulada, irrompem ferozmente pelo areal, criando uma abertura de cerca de 224 braças, bem profunda.

As condições lagunares irão renascer. A vida irá voltar à Laguna e com ela a esperança  dos muitos que teriam procurado novas paragens que, terminada a pandemia, voltarão.
Sousa Ribeiro é aclamado por todos os cantos lagunares. Aclamado com o epiteto de “Pai da Pátria”. Todas as vilas se “obrigam” a erguer uma estátua em seus domínios, ao “Pai da Pátria”, alvo de aclamações exaltados, destinatário de poemas épicos, eleito figura maior da história.
Hoje lamentavelmente esquecido....


Nota: a história de João Sousa Ribeiro, com fortes probabilidades a figura de maior dimensão da história de Aveiro, não apenas neste episódio, mas em  tudo o que posteriormente fará em prol de Aveiro‑ sem  comparação (em nossa opinião)na dimensão com outros  actos por vezes insistentemente relembrados‑ estão relatados   no livro “ João Sousa Ribeiro-O Pai da Pátria- ed Papiro, que editámos em 2012.


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