LENDA DA TERRA DA LÂMPADA
Há muitos... muitos anos, tantos que já ninguém o sabe ao certo, aconteceu em Ílhavo uma estória que virou lenda.
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Era uma vez... uma terra que em menina foi surrada pelo mar que sucumbia aos seus pés. E que depois, já crescida, viu aquele amainar, aprisionado pelos braços da sereia lagunar. Irriquieta e fugidia logo tentou escapulir-se, obrigando as suas gentes, pescadores da borda, a atravessar o prado já então a revessar de verde, que se estendia, qual tapete macio, para os levar à Costa-Nova em demanda da sardinha. Que, tal como a mulher, se quer rechonchuda e pequenina. Como todo o gentio do mar, pescadores ou mareantes, sempre os ílhavos foram mais tementes a Deus que a esse cão danado – o mar! Por vezes amuado de tanta ousadia, enraivado, ronrona ameaçador, desfeito em ondas espúmeas a embater contra os frágeis barquitos em que aqueles ganham o pão para os seus. Nada que os apouquentem ... ou sequer aporrinhem.
Era nesses momentos dantescos que o arrais Ançã vociferava chacoteava : Ah!... danado, se fosses d’aguardente emborcava-te só de um trago!
E logo o mar parecendo amedrontado com o desafio do arrais gigante, alquebrava e, às arrecuas, tolhido, desembestava a tramontana, serenando. Mas com Deus não se brinca, ou ofende, e os ílhavos, criaturas de fé devota, muito embora confiassem nos seus arrais – que não havia outros de tal ògalha por essa costa abaixo –, quando, chegados os momentos de aflição –que os havia...havia–, faziam as suas promessas ao S. Pedro. Orago da sua devoção que, atento na Igreja da santa terrinha, no altar, velava pelas suas vidas. Acreditavam piamente no dito....
Apesar da vila ser, naqueles tempos idos, aconchegada e pequena, era escufenada, tendo já desde os nossos primeiros reis uma igreja real, vistosa e imponente, conferindo-lhe merecido destaque. Os pescadores e famílias, principalmente o mulherio, eram gentio muito religioso, comparecendo diariamente à missa pelas matinas, levando consigo uma esmolna que entregavam às almas para protecção dos seus. Esta igreja desde muito cedo passou a ser das mais importantes e mais ricas de toda a região de Aveiro, exibindo valiosas imagens de Santos em terracota, adornada de ricas alfaias de ourivesaria, muito faladas e, por isso, também muito cobiçadas. De tal modo que, aquando das invasões francesas, os soldados do general Junot a esbulharam das suas riquezas para assim recomporem o seu cofre depauperado.
Conta-se então, que só uma rica custódia de ouro – que hoje ainda existe – e uma valiosíssima lâmpada (vistoso e artístico candeeiro de prata que descia do tecto alumiando bruxuleante a capela do Santíssimo) se salvaram, porque um tal Malaquias – o Raposo –, antecipando-se à soldadesca francesa, as encapotou na batina, levando-as consigo, tendo-as enterrado. Só passados muitos anos, vendo que o perigo tinha então já passado, resolveu desenterrá-las para as entregar ao prior. Que muito agradecido pela esperteza do acólito, logo mandou preparar grande festa para celebrar o acontecimento do retorno das valiosas peças, à igreja. Uma festa com direito a pregão prodigamente trombeteado pelos párocos das redondezas que, do alto dos seus púlpitos, prometiam foguetório de arromba, procissão solene, testemunha da virtude da hora, a que não faltaria o ignoto dominicano frei Elias, cuja voz tonante faria ribombar os Evangelhos mais as ameaças da Santa Inquisição. Alevantando abundosas tremuras em todos aqueles que, pecando, andariam tresmalhados, mais perto de trambolhão no caldeiro onde frigiam as almas penadas, do que no azul celeste do paraíso – promessa habitual do sermonário – por onde ricos e pobres se passeiam, irmanados na dádiva de graças ao Altíssimo. Vá-se lá acreditar. Mas nestas coisas do alto mais vale precaver do que ver.
Tanto alvoroço faria acorrer à vila gentiaga estranja para render tributo aos tesouros que voltavam a arejo para regalo dos fiéis crentes, aboletados por toda a vila em palheiro de compadre, de amigo ou de simples conhecido, tudo gente de boa crença e fulanagem. Andara o povo em grande folgança, a doidejar havia já três dias, com visita obrigatória à esplêndida igreja que, aperaltada com vestes de gala, mostrava, envaidada, as relíquias a quantos as quisessem admirar. Um ror de gente...
No final da festarola era já segunda-feira. Dia para estas gentes voltarem à labuta diária depois de reconfortadas com a missa da madrugada. Ainda os galos cucuritavam nos poleiros, já na igreja restavam abusacadas algumas beatas que, ouvida a missa, ali ficaram a fazer as suas rezas e, assim palrando, esperavam pela missa seguinte, da manhã; duas sempre reconfortavam mais do que uma só.
Como eram mulheres de palanfrório, daquelas que todas as tardinhas vinham ao rebate contar as últimas, aproveitavam aqueles momentos para pôr a conversa em dia, pois que a festança as afastara do convívio diário da má língua, onde as bocas baladeiras falavam disto e daquilo... desta ou daquela, de toda a gentalha do sítio; o tempo dava para isso.Era tanto que ainda crescia para rezar um Pai Nosso e três Avé Marias.
— Oi... chopa! - olha para quem entrou..., disse às tantas a Maria Calatró da Malhada, interrompendo a conversa.Acto contínuo virando-se para a Josefa do Arnal, ali engrunhada, enxerida,encapuchada no xaile de burel que lhe cobria a cabeça ,como se o frio da manhã a tivesse entorpecido; ao tempo em que indicava dois indivíduos que, de escada na mão, com umas cordas aos ombros, tinham entrado na igreja onde ainda apenas a luz mortiça das velas e as das lamparinas da majestosa lâmpada quebravam o negrume. Tinham parado debaixo da mesma, assumindo um ar de consternação e espanto, dizendo em voz alta um para o outro, de modo a que as beatas ouvissem:
– Ora vai-te... que raio de negócio fizemos... Quem é que a há-de limpar por semelhante preço?!..., dizia o mais baixote, parecendo arrependido com o negócio.
– Bem... já que justamos o preço, agora não há nada a fazer... Toca a baixá-la que se faz tarde..., diz o outro, homem de barba cerrada, de aspeito desconfiado, olhar de aspe decidido a saltar sobre a presa, ou fugir lesta, se inimigo se abeirasse.
E se melhor o disse, mais rápido o fez: pondo mãos à obra, subiu a escada e arriou a lâmpada perante os olhares assarapolhados da Josefa e amigas, logo a metendo num saco saiu tranquilamente da igreja, de escada às costas...sobraçando o saco ao ombro.
– Estais a ver... chopas, como o Senhor prior manda tratar das coisas da Igreja para esta luzir ?!..., diz a Josefa Carqueja para a Calatró.. e agora inda hás-de dizer que o home é um mancatufe que nem p’rás novenas serve. És uma mal dizente...raios! Que ainda hás-de ir estorricar no fundão do inferno... morrendas se não falendas, vade retro satanás.
Tocadas as sete badaladas da manhã, o prior lá veio com o sacristão para rezar a segunda missa do dia.
Vinha ofegante o abade.Face espaçosa onde ressaiam as bochechas avermelhadas que uns diziam ser do afã do ministério, mas que outras, maldosas, diziam ser fruto das barrigadas das caçoilas do carneiro avinhado, ou de se alambazar – à farta! – com a chispalhada que servia de lastro às enguias de escabeche, tudo regado por tinto farto vindo das bairradas, que lhe provocava aziumados borbotões. O cabeção, manchado pelas manápulas pouco asseadas a tentarem aliviar o nó de enforcado, inchava-lhe o pescoço, exsudando-lhe os refegos que serviam de caneja para o suor que escorria para a sebada sotaina ruça.
É então que a Calatró, alvoroçada e já desconfiada de tanto cuidado do prior, pois no seu entender não era «arrais» p’ra tão grande barca, lhe salta ao caminho e diz:
– Ó ó!... senhor Abade... tanta pressa para quê (?!) santo Deus...a limpeza podia esperar mais um poiquinho e acabar-se a festa com a nossa lâmpada, cá!...
– Que limpeza estás tu a dizer?... Ó mulher!...E de que lâmpada... estás para aí a falar?!, resfolga o padre João dos Mártires.
– A que o senhor Prior mandou alimpar, hom’essa!, que estes olhos que o chão hão-de comer, viram ali... e «q’uinda» agora a levaram, a mando de V. Reverência– responde a Calatró apontando para o tecto vazio da igreja.
E foi só então, que o Prior olhou para o sítio onde era suposto estar a lâmpada. Vendo-o vazio, de olhos esbugalhados, gritou:
— Ah ladrões. Ah cães!...que me roubaram, grita o aporrinhado abade, vermelho como um pilado da praia, logo se arriando das pernas, caindo para o lado... a bufar em apopléctico estertor.
— Ide depressa buscar auga da benta... que o pobre homem vai-se, grita a Luísa dos Sete Carris para as restantes, ao tempo em que amparava o desfalecido abade nos seus braços de pimpona pescadeira.
— Que vá... olhendas!... É como a lâmpada, assome-se que é um ar que lhe deu– logo diz a Calatró que não perdoava ao prior tê-la um dia mandado para casa onde, disse, tinha mais que fazer que estar ali sentada no rebate da igreja à espera da missa da madrugada.
E logo a Calatró, acrescenta :
— Q’uinté tenho mais pena da lâmpada que do corvo que não faz falta aos filhos, que os não tem, referindo-se ao pobre abade que, pouco a pouco, depois de rebaptizado pela Josefa, começava a dar acordo de si. Uns gorgolhões de cachaça que o sacrista tinha ido, lesto, buscar ao passal, acabaram por recompor o pobre diabo.
— Ai!... filhas..., diz a Luísa, desta vez nem o Raposo nos vale!!!
Em Ílhavo, durante três dias, os sinos dobraram afinados por ordem do prior João dos Mártires; tantos quantos os da festa.
A lâmpada, essa, levada pelos larápios, levou um sumiço...
...até hoje.
Senos da Fonseca
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