sábado, setembro 03, 2022

A minha visita ao S.Paio

Segunda –feira, mal ataviado e mal informado,procurei, contudo, não faltar ao encontro anual com o Orago.
Desamoirei o «Costa-Nova», essa beleza de bote de fragata (já agora aqui fica a informação, pois andam sempre a perguntar-me que tipo de barco é aquele), icei velas e, toque- toque – no caso bole-bole que o vento estava mareiro- em duas horas e meia atracava o “Costa Nova” ,ao cais dos pescadores, na Torreira.
A meio da singradura, na ilha da Testada descobri dois enormes bandos de flamingos  que, sossegados - tão sossegados que nem reagiram ao meu pum-pum! para ver se os fazia levantar, e assim admirar o deslumbrante espectáculo daqueles pernas longas ,rosados, flaps em baixo, a ganhar altura - procuravam a mariscada que lhes dá os salpicos da plumagem




                     

                                                                 Os flamingos


Chegado á Torreira, o foguetório estreloiçava no ar, avisando que a festa ainda ia a meio. E a procissão, também, pensei eu de que ….
Amainadas as velas, trincados os cabos, arrumadas as tralhas, fechados os paióis de proa e ré, olhei espantado para uma série de bateiras embandeiradas que se faziam ao regresso. Interrogado um amigo com quem regateei (?!), em tempos, no Moliceiro «O Ilhavense» - paz á sua alma e a quem assim ordenou o seu fim, o de apodrecer no cais da Bruxa - fui informado que a regata dos «Chinchorros» em que eu pretendia participar, hors – série, se tinha realizado no sábado.
Bem, engano por engano - um homme nasce p’ra ser enganado, se for que não se importe
                         

                                         cangas (inspiradores dos brochados do "Moliceiro")


Cangas há muitas!.... dizia o Felisberto, «Ógado da Inês «Mamalhuda» - que até de vaca era corno!......

 Decidi render de imediato visita ao S.Paio, não fosse ele levar a mal, a falta de urbanidade. Com santos, nada há como os não indispor. Zangados podem atirar cá para baixo, alguma maroteira.
A procissão, essa, já não ia no adro, pois tinha feito o seu percurso. Os andores jaziam já encanteirados dentro da igreja, ainda exuberante e prodigiosamente floridos, exibindo, ao lado, um dístico: Proibido roubar flores. Sem mais. 
Que raio, interroguei-me eu. Lá que se roube um Multibanco, eu compreendo. Mas uma flor(?)... Uma flor:-flor.... Não das outras, está bem de ver!.. Se ali estivesse a Manelinha Leite, aproveitava para afirmar com aquele ar de beata empedernida: - a onda de criminalidade já chegou ao interior dos lugares de culto, tudo por culpa desses maçons socráticos.
E foi então, aí, que vislumbrei o S.Paio.Não o o pequeno e mulato S.Paio, avinhado como uma linguiça, escurecido por tanto baptismo com tintol.

Este Orago tem uma história.

 

A Torreira (meados séc.XVIII) é um pouco mais nova que a Costa-Nova. Começou por ser um ponto do litoral onde se empregou a Xávega. Ora, conta a tradição que, um dia, na coada de uma das artes, terá vindo arrolado um santinho de pau, com rosto de criança .Logo foi adoptado para orago, por aquela gente da borda. Companhas sem orago, não puxa remo . O ser o orago, uma criança, até teria as sua vantagens, deveriam ter pensado aquelas gentes. Mas para o que eu não encontro explicação, é para o facto da tradição mandar verter almudes de vinho sobre a criança-santo, despejando-os pela cabeça abaixo do pobrezito. A  tal ponto que as faces rosadinhas tomaram uma cor arroxeada que mais parece provocada por cirrose de figadeira empapada em vinhaça, a que só falta, uma cebolada, para dele fazer umas excelentes iscas.
Ora o S.Paio é santo de muita devoção lá para a Galiza. E eu acredito que, aqueles que trouxeram as Artes Grandes, no séc.XVIII, para estas bandas, teriam trazido com eles o santinho, dando conta do seu feitio milagreiro. A entrega do santo deveria ter tido festa de arromba. E copos a mais. Às tantas foi um banhada. E daí a tradição foi o que foi . Mas ao que parece, já não é…

Voltemos ao rendez – vous:
No andor estava o Orago que, muito embora exiba a cara de menino, tem um corpo de rapaz espigadote. Estive tentado a dizer-lhe: -Vai chamar o teu irmão mais novo. Mas como nisto de falar com santos, não sei em que dialecto se faz, decidi antes inquirir uma santa, que, ajoelhada em frente do irmão mais velho, se lhe encomendava, confiadamente.


 


                           

                                                          O S.Paio (espigadote)

-Olhe por favor, não me sabe dizer o que é feito do santinho «bebedola»?
-Está guardado….
-Então porquê? Não me diga que têm medo que o roubassem…adiantei eu, com cara de santa ingenuidade.
-Pois olhe o senhor, que até «assucedeu», uma vez….Uns «escaramentados velhacos», quiseram levá-lo p’rá Aveiro….Mas não é por isso. É que faziam –lhe uma tropelias e o Sr Prior achou por bem acabar com elas…
O santo não compareceu ao encontro, não por sua culpa ,que até devia de gostar desta visita de um ateu, respeitoso, seu conhecido e com quem mantém bom relacionamento desde há mais de cinquenta anos. Paciência…
Como habitual dei uma volta pelo arraial da feira antes de entrar numa das muitas tasquinhas para a bacalhauzada do costume. São dois quilómetros de barraquinhas das vendas.Tudo de marca(?!): malas Versage, óculos Raybam, camisolas La Coste, Calvin Kleiner, etc. etc. Este ano proliferavam, contudo, os hair dressers a anunciar:
Fazem-se TERERÉS e RASTA
Nas vendas de roupa, por todo o lado se exibiam body’s para todos os gostos e tamanhos: vermelhinhos como as «papoilas saltitantes» do Benfica, negros como a Briosa, ou branquinhos como as pombas que pretendem engaiolar.
Dei comigo a apreciar como uma Murtoseira avantajada, daquelas que só debaixo de um capote de Varino disfarça os refegos, mirava e remirava, tirando medidas a um dos vermelhos, tipo fio dental. Não entendi lá muito bem – ou imaginei - como seria a avantajada moçoila , vestida (despida), com o bodesão a conformar-lhe as regueifas. Ainda se fosse ás riscas.O que estaria ela a pensar fazer com aquele body extra largo? Dei tratos de polé á minha imaginação ,que dizem fértil, a pensar no que seria o ataque do bode (salvo seja)
Mas a verdade é que, na feira, se encontra tudo.
Por exemplo: - eu que me vejo atrapalhado sempre quero comprar uns boxers (fino não é?!) -XL, lá, tinha ao dispor a medida XXXL. A 5€ a molhada. Não podia perder a oportunidade, até porque a marca era convidativa: «DESPERADO», assim mesmo. Elucidativo e apelativo para aqules momentos , em que, um home se vê com as ditas na mão…
Adiante que estamos a falar de coisas sérias...…
Regressei ao cais. Foi aí que deparei com um grupo especado, embasbacado, contemplando o «Costa-Nova». Claro que quando cheguei meteram conversa, inquirindo onde tinha eu ido buscar aquela maravilha. Palavra puxa palavra, e eis que do grupo, há um velhote simpático que me atira:


 
                                                               O «Costa-Nova»

-Pena é que tenha sido pintado «à moliceiro». 
Foi lamiré bastante para eu já o não largar…
-Então mestre diga-me porquê…
-Olhe: - ali e ali faltam os botões de rosa; ali, àquelas letras falta-lhe ressaimento, e no painel de popa falta a corda da embelezadura. E a bica não é pintada em preto.

Fiquei espantado: andei eu na semana passada a dilucidar sobre as diferenças, levando horas a ensaiar a dissertação, e o homenzinho, um pintor de “Varinos”, “Faluas” e “Fragatas”, explica-me, ali, tudo bem explicado, em duas penadas. Exactamente como eu pensava ser. As diferenças são, de facto, abismais.
Então abri o jogo e lá lhe expliquei que eu sabia a diferença. Só que não podia levar o barco todos os anos à Moita para ser pintado por mestre. E assim, tinha-me socorrido do que havia (do melhor!) por cá. Como não havia outros para acomparar, fiquei-me pelos mestres de cá, e o barquinho faz um vistão. Pudera…
Conversa puxa conversa, e quando dou comigo – e com o «Costa-Nova» - velas içadas, ambos desejosos de regressar para trazer cumprimentos do orago á Srª da Saúde,o CN estava em seco: encalhado, abusacado no lodaçal.

-Estou bem aviado, pensei. Agora vou passar aqui a noite. 
Resolvido lá me atirei para o lodo. E zás: fui por ali abaixo. Espetado até à cintura, eu já queria era, ao menos, saltar para dentro da embarcação . Mas o que vale é que por aquelas bandas tenho muito gente conhecida. Lá vieram quatro murtoseiros, safar-me: -a mim e ao «Costa Nova».

         A calmaria apanhou-me entre águas, e lá arrolei com a maré e com um sopro de vento, até ao CVCN.
Lancei mourão às dezanove. Tempo de tirar as arrufadas da bica da proa. O  CVCN estavaDescontraidamente lá vim para casa, todo sujo de lodo, quando ouvi uma voz:
-Onde é que vai de cuecas?!

      Então não era mesmo verdade que despidos os calções …por causa do lodaçal, eu nem tinha dado
         que vinha naquele preparo!....
           Ao menos se estivesse atento, tinha calçado as «Desperadas».
           Cumpri a minha promessa. As contas com este "santinho". ficam em dia.

           



Senos Fonseca. (2004)



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