O Senhor Zé e o «Visconde»
Mais uma sota, nesta segunda-feira, permitiu-me o reencontro. Eu, a Zefa e a Bernarda, falámos de muita coisa. De entre elas catei uma bonita «estória». Vo-la conto…
- Olhe – diz a Bernarda: este tempo desembestado faz-me recordar a nossa vida em pequenas. O palheiro onde nos abrigávamos do tempo, feito de um tabuado mal encostado, deixava passar o vento frio por entre as frinchas, que inté zunia. Então, nas noites de surriada, tiravam-se os cobertores serranos da enxerga e punham-se a fazer de anteparo. E para não ir para a enxerga e ter frio, abusacávamo-nos em volta do borralho. À luz de um candeeiro trémulo, por vias da fisga ventosa que escapulia entre frinchas, íamos ouvindo os maiorais, enquanto uns cavaquitos apanhados do outro lado, no matagal da Maluca, ardiam, mitigando o frio. E entre co
nversa lá íamos assalgalhando, quebrando o jejum.
Numa lengalenga familiar, ouvíamos «histórias» do antigamente. Lembro uma, que fez o encanto da minha meninice. Sabe?!: sempre pensei, porque fui testemunha viva da heroicidade demente daqueles «arraises», que, às vezes, até parecia não regularem bem, quando no meio do areal, frente ao desalmado mar, gritavam: – «bota prómar, que este mar enxogalhado não mete medo a homes». E nós, que ficávamos especadas na praia, arrepiadas a ver o meia-lua encabritar-se na primeira vaga, e logo atrás dela vir a segunda ainda mais danada, arrepanhávamos os cabelos e só sabíamos gritar: – ai o meu Pai, coitadinho, que lá fica!
Ora um dia, contou o meu avô, o Chico «Cuteta», o Sr. José (José Estêvão) tinha vindo, como habitualmente, à borda, a conversar com as «nossas» gentes. A saber da nossa vida. Trazia com ele uns «fidalgotes» da cidade, que se vestiam astrapalhados, dizia o Ti Cuteta, com a areia a entrar-lhes para as polainas. «Que inté» pareciam um barco alquebrado «a meter auga»…
Parando, apresentou-os ao arrais Thomé. Um dos fidalgos, homem de larga bigodeira engomada e retesada que, mais parecia imitar o «meia-lua», dirigiu-se sorridente ao Thomé, dizendo-lhe:
- Atão vossemecê é que é um dos tais «ílhavos» que o Visconde diz pedirem meças ao campino, a saber qual mais valente (?): se o que defronta o touro, se o que investe o mar!!!!... Sim senhora, finalmente vejo um dessa espécime. E Vossemecê que pensa do que diz «Visconde» (?), pergunta o fidalgo letrado, ao Thomé.
- Ora saiba òspois que eu penso que esse tal Visconde – òsculpe mas não o conheço – é zamparilha. Ora essa: – olhe …
E zás!!! A um boi que vinha dar o chicote ao «calão», fila-o pelos cornos, torce… torce… torce… até que o boi ajoelha e cai de borco na areia, resfolegando e espumando, preso pelas manápulas do Thomé.
Este levanta-se, sacode as mãos, põe o boné, e diz para o amigalhaço do Sr. José:
- Ora diga agora ao tal «Visconde» que faça isto com o mar. E veja quantos homes eram precisos para o abraçar. Todos os que há no mundo. O «manso», esse (!), como-o eu em bifes. Sem sal parecem feitos de palha. O mar, esse (!), – e ao dizê-lo tira respeitosamente o boné – bebe-se aos golinhos, senão afogamos no seu sal. Essas gentes de que fala o dito, enfarpelam-se de vermelho e são bailarinos. Morres-lhe pouca gente, por certo. Olhe em volta Vossa Senhoria, e repare na nossas gentes: vê-os quase todos de preto. Vestem-se assim pelos que ali (apontando o mar) ficaram. Mas isso não os quita de «zangalharem» com ele, as vezes que forem precisas.
Enquanto a conversa decorria, o Sr. José ria a bom rir.
- Pois… Ó Pinheiro!!!, meteste-te com boa rês. Logo este gladiador do mar.
Senos da Fonseca
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