História do CONVENTO de Cimo de Vila.A polémica.
Em 1922, o jornal «O Ilhavense», publicou a resposta negativa dada pelo Ministério da Justiça em ceder, gratuitamente, à Câmara, o edifício do Convento. Essa atitude derivava do facto de, o Convento ter estado completamente abandonado, e teria, por isso, revertido para o Governo. O Convento, diz-se no ofício nº15013 de 20 de Janeiro de 1922, do Ministério da Justiça, pouco ou nada mais era, que um montão de ruínas, pelo que, o Ministério, decidiu mandar avaliar o edifício. Seria por esse o valor que estaria disposto a cedê-lo à Câmara Municipal de Ílhavo, já que a esta, nem sequer era reconhecido o direito de ficar com os bens pelo valor de avaliação (concedido às entidades que fossem depositárias dos mesmos a titulo precário), dado aquela ter abandonado o prédio.
A Câmara acabaria por adquirir o imóvel pela quantia de 18.500$00,
Acta da reunião de 24/07/1922 da aquisição do Convento
nele tencionando instalar os Paços do Concelho, depois de efectivar obras de restauro. E para lá transferir as escolas que até aí vinham funcionando em casa particular, de que pagava renda mensal.
Em 1925, estalaria uma explosiva e truculenta polémica, que poria Ílhavo em alvoroço. Em «O Ilhavense», o Dr. Manuel Damas (e outras vezes o Director Pereira Telles), envolveu-se de um modo violento, por vezes patético e nem sempre decoroso, com uma outra facção politica local chefiada por Eduardo Craveiro, este utilizando os jornais, «O Debate» de Aveiro (de que era correspondente) e «O Beira - Mar», de Ílhavo, para defender as suas posições, respondendo nos mesmos termos, ácidos até ao insulto. O pleito tomou forma de escândalo público, assumindo dimensão que extravasou os limites locais.
A questão em torno da qual se movia a diatribe, residia na acusação feita por M. Damas do descaminho dos valiosos haveres do Convento de Cimo de Vila que, as irmãs de Calais teriam abandonado pela calada da noite, em 1910. Ora, para administrador (ou depositário) desses bens abandonados, teria sido nomeado pelo governador civil de então, uma Comissão de que fazia parte o Presidente da Câmara, Eduardo Craveiro, depois de feito competente arrolamento em Outubro de 1910.
Movia Damas, para lá da rivalidade politica, a suspensão de actividades a que tinha sido sujeito por um período de três meses que, o mesmo, considerava ter sido consequência de acusações graves que os republicanos lhe teriam feito.
Antes de irmos à polémica revisitemos um pouco da história do Convento.
O Convento (?) transformado em Escolas
No Arquivo Distrital de Aveiro, num artigo em que é referido o irmão pouco lembrado, de José Estêvão, António Augusto Coelho de Magalhães, refere-se que, uma das causas da sua doença teria residido no facto de, uma sua filha, ter fugido para França, juntamente com outras quatro companheiras, esgueirando-se do recolhimento onde se encontravam, em Aveiro. Fuga que teria contado com a colaboração de um “tal padre Beirão”, entrando as fugitivas para a Congregação das Irmãs Franciscanas de Calais. Esta fuga, o eco que teve junto da população pelo rocambolesco da situação que pareceu configurar um “autêntico sequestro” (a que não faltou a «clausura» das «desencaminhadas» no recolhimento de «S. Patrício», em Lisboa, antes de saírem para França), levaria à demissão de Manuel Firmino do cargo de Governador Civil do Distrito; Este episódio foi posteriormente utilizado, como «razão» para a feroz oposição à entrada das Irmãs de Caridade, na Misericórdia de Aveiro (1888).
No período da “convulsão liberal” laicista, gravoso para as Ordens religiosas, numa altura em que o papado de Pio IX pretendeu recuperar algum do esplendor, influência e do poder da Igreja, em declínio desde a Revolução Francesa, em Ílhavo, eram ao tempo, esperadas as Irmãs de Caridade que – dizia-se –, viriam instalar-se na casa do Padre Morgado (Taboleiros) a qual para esse efeito tinha sido sujeita a benfeitorias de vária ordem. Mas quem se apresentou a ocupá-la, em dado dia, seriam dois eclesiásticos e quatro senhoras, duas das quais se afirmava, serem naturais deste Distrito; ora uma destas – a irmã BRANCA – era, nem mais nem menos, do que a sobrinha de José Estêvão. Foi pois esta, uma das fundadoras do Retiro da Nª Srª do Pranto das Irmãs Hospitaleiras da Terceira Ordem Regular de S.Francisco, onde se ministrava “ensino gratuito a meninas, especialmente a filhas de pescadores”, e funcionava já…, espante-se! - como um verdadeiro, «Jardim-de-infância» ”pois receberia as crianças com menos de três anos, às horas em que as mães estariam ocupadas em outros afazeres”.
As Irmãs da Caridade fariam parte do contra ataque do Papa Pio IX, destinado a recuperar o esplendor da Igreja e a influência que aquela vinha perdendo em toda a Europa, desde o período da revolução Francesa. A esta posição, respondia, em Portugal, um «novo catolicismo» que rejeitava liminarmente a (nova) piedade surgida, a que se referiam, entre outros, A. Herculano e Oliveira Martins, afirmando “não ter esta, nada a ver com a antiga religião”. As Irmãs da Caridade – «importadas» de França – “fazendo parecer que em Portugal já não haveria entre nós quem detivesse o espírito de caridade”, foram vistas como sendo uma emanação do espírito jesuítico. Por isso, prontamente denunciadas pelo radicalismo que as associava a uma prática, onde “nem cabia a visita aos pobres”. Gozando da alta protecção dos «grandes e da igreja», estariam, por isso longe de merecer o apoio popular, pois, dizia José Estêvão “o culto externo das Irmãs é pouco consentâneo com as formas, com os costumes, e com as prevenções da autoridade administrativa”. Via-se nas Irmãs da Caridade uma reacção das classes poderosas que, unidas à Igreja, pretenderiam «opor-se» ao ensino da escola pública, no intuito da manutenção do papel hegemónico detido sobre a mentalidade popular.
Pelo que já anteriormente referimos, a prática das Irmãs, em Ílhavo, especialmente no campo do apoio aos órfãos e aos filhos das mulheres trabalhadoras, bem como na educação das jovens, parece ter merecido justificado reconhecimento, de validade e respeito, muito embora a sua instalação – com as peripécias da Irmã Branca –, e o seu posterior desaparecimento envolto em grande mistério, que levou ao fim da Instituição, com o confisco de todos os seus bens no País de origem, permitem colocar algumas interrogações, deixando campo aberto a hiperbólico locutório sobre qual seria (exactamente) a sua finalidade última. Mais envolta em névoa impeditiva de discernir quando, em 1910, se constatou a repentina fuga de todas as Irmãs, – sem qualquer aviso prévio. Perpetada ao cair da noite, em carroças fretadas para o efeito, deixando para trás a Instituição e todos os seus bens abandonados à pilhagem, o que motivaria fortes especulações deixando um rasto de mistério nunca totalmente explicado, nas circunstâncias.
O episódio das Irmãs da Caridade, de quem se dizia “serem um veiculo para submeter as consciências e manter o povo na ignorância através do ensino religioso a que se dedicavam”, serviu para a denúncia, por parte da esquerda, dos privilégios mantidos pela Igreja, que se consideravam excessivos, e prejudiciais, pois com eles se pretenderia impedir a democracia, a igualdade de direitos do povo e a sua libertação secular. E as Irmãs viriam mesmo a ser apedrejadas em Agosto de 1858 à saída de uma igreja, levantando ondas de indignação, na facção conservadora.
Em Aveiro seriam impedidas de entrar no Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Para esse propósito contribuiu José Estêvão quando, na sua notável intervenção no Parlamento, afirmou a dado passo: “Acho desnecessária a instituição. Se Deus quer a caridade seja tão oculta, que a mão direita não saiba o que dá a esquerda, para que é então decorar a cabeça das suas sacerdotisas com um certo ornato… e o corpo com uma certa fazenda”.
O sentimento anticlerical era levado a todo o país pelos vultos do pensamento e cultura que se afirmavam chocados, e revoltados, com a centralização da cúria romana. O que, se não era uma expressão anti-religiosa ou até anti-católica, era antes uma critica às práticas e devoções e às instituições (Patriarcado e Ordens). O debate “exprimia uma contradição insanável entre os adeptos de uma sociedade livre e secularizada e os defensores da restauração de um modelo clerical”.
A Polémica (1925)
Abandonado o Convento, deixado o seu recheio ao dispor de quem lá quisesse entrar, os seus bens foram, em Outubro de 1910, anexados pela Câmara de Ílhavo, aguardando-se um processo que corria, contra a Congregação das Irmãs de Calais, a correr em França (que terminaria com a confiscação de todos os seus bens!). Foi pois, em 1910, feito um rol dos bens existentes, repetido em 1915 (este muito diferente do anterior) do qual, ninguém mais tarde se assumiu conhecedor, ou detentor.
O período conturbado e as lutas entre as diversas clientelas politicas, foram, em Ílhavo como no resto do País, assumindo extrema virulência, que nem sempre acabava da melhor maneira.
Em 1925, era bem patente a diferença de opinião entre os que se agrupavam em volta de «O Ilhavense» - os conservadores monárquicos que apoiavam a figura politica local, Diniz Gomes - e aqueles que, no « Beira-Mar» se situavam perto das ideias republicanas, ou pelo menos militavam na corrente progressistas, próxima.
Ora o recheio que restou do Convento, que uns diziam ser muito valioso, mas que outros afirmavam convictamente ter sido, em boa parte roubado no período em que o Convento esteve de porta aberta sem ninguém decidir a quem competia guardar o que lá se encontraria, parece ter levado um sumiço.
Desses bens relevava-se o recheio: trem de cozinha que se dizia ser o melhor de Ílhavo, 30/40 camas, roupas para as mesmas, pinturas e paramentos, talheres, serviços V.A etc. etc. O Convento, dizia Damas, estaria cheio como um ovo.
Aconteceu neste período (1922) que, sobre a câmara de Diniz Gomes se levantaram algumas acusações, denunciando-se obscuros procedimentos de índole económica e uma situação catastrófica das finanças da mesma. M. Damas parece vir aproveitar a questão do Convento com a finalidade de criar um facto político para servir de distracção do problema que afligia as hostes conservadoras. E assim, surge a levantar publicamente a questão que, há muito corria de boca em boca. O rol do recheio que tinha sido objecto de arrolamento, e do qual teriam ficado responsáveis, conhecidos administradores, - diz Damas em «O Ilhavense» – preenchia 58 páginas, o que atestava uma ideia da sua grandeza. O que teria sido arrolado deveria, pois, existir. A não existir, alguém teria de dar conta do seu paradeiro.
E adiantava: já vimos como as pobres freiras foram postas fora de Ílhavo («O Ilhavense» de 12.04.1925); pouco menos que nuas. (O que de facto não fora verdade pois, ao que parece, ninguém as teria posto fora) Elas é que teriam desaparecido, certamente pelas razões que mais tarde pareceram esclarecidas quando, no seu País de origem, a Congregação foi dissolvida e lhe foram confiscados todos os seus bens. O problema da sua desaparição repentina não teria sido motivado por reacções locais, mas sim, consequência de uma situação exterior em que estaria envolvida a Congregação das Irmãs de Calais.
M. Damas continuava: A malandragem pagava assim aquelas que lhes ensinaram as esposas as filhas e as mães.
E até do simples desaparecimento de vasos, Damas se servia para acusar os republicanos, invectivando Eduardo Craveiro de os ter oferecido a várias pessoas gradas, em Ílhavo.
Craveiro defendia-se com os recibos que exibia, afirmando serem prova de ter entregue a administração dos bens, em 1915, ao Dr. Carvalho, novo administrador Concelhio. Nos mesmos indicava-se o que teria sido vendido (o valor de 45$08 que era o saldo acusado pelo novo administrador).
M Damas exibe declarações recolhidas junto de alguém (incógnito), que se afirma ter sido uma das fugitivas e lhe teria afirmado: fomos obrigadas a deixar o nosso tam querido colégio da Nºª Srª do Pranto e a seguir para a própria pátria como se fossemos criminosas (.) sem de lá trazer nada.
E a polémica foi subindo de tom, com o tratamento dado a Craveiro de acéfalo e míope de alma …, mau filho e péssimo irmão … e pior cidadão, invectivando a sua linguagem das latrinas, pelo que deveria ser expulso da casa, e do convívio, de todos os ilhavenses (incita Damas).
A padralhada não podia faltar ao combate; e associa Craveiro à aversão clerical, acusando-o de ter afirmado - e como eu não engraço com alguns padres (…). Desse modo Damas (sidonista sem ser monárquico) tenta obter o apoio do dito grupo para a sua cruzada. O que, diga-se, era de importância vital dada a influência clerical no meio local.
Logo Craveiro ripostava: - se isto fosse um País de homens, estes tipos da «Corja» (O Ilhavense) era de, sumariamente fusilá-los contra um muro
De imprecação a imprecação, de insulto a insulto, de um lado e do outro, começa a germinar a convicção que a questão acabará na cadeia ou sob o chumbo das armas.
Certo é que, o recheio, poderia ter desaparecido, pois que há noticias da época a referir que o Convento esteve de porta aberta à disposição de quem quis? Mas também certo e estranho, é que se verificou que a Confraria, em poucos anos, teria amealhado bem, como constatado. O Convento era proprietário de excelentes prédios rústicos: terras na Lagoa, pinhal nas Ervosas, pinhal na Castelhana, pinhal na Gândara de Sousa, metade de um pinhal em Salgueiro, um pinhal nos vales de Sousa, e uma terra de lavradio nas Cancelas, num total de 29 prédios!!!.( que se dizia terem recebido como herança do Padre Calvo, o qual teria deixado todos os bens ao Convento a troco de ali ser tratado um filho (?!) -ou afilhado - demente). O, que de facto terá acontecido.
Nunca foi esclarecido onde estes bens foram parar. O Governo de então prometeu mandar apurar o descaminho dos bens fugíveis e infugíveis. Mas nada foi apurado…
Os opositores zurziam-se forte (1925), usando uma terminologia nem sempre a mais aconselhável. O trauliteirismo manejado por um caciquismo que enquistava e destilava ódios, procurando por todos os meios assumir o poder, expressava-se de um modo virulento, fazendo gala do insulto patético, soez e odiento, não olhando a meios para atingir os fins.
Em 1925 a Câmara de Diniz Gomes, acusada de graves procedimentos, de onde sobressaía a grave situação económica municipal, com os cofres completamente exangues, acabaria por ser dissolvida (Dec. Lei11875 de 16 de Julho de 1925). Interinamente o administrador do concelho, Coronel Alberto Maia Mendonça, assume a posse da Comissão Administrativa, até ao momento em que a entregará à Câmara de Júlio Calixto.
A questão do Convento terminaria, assim, sem qualquer tipo de esclarecimento cabal, ou satisfatório... Se havia dúvidas, elas não só se mantiveram, como até, porventura aumentaram. Mais tarde, novamente na Câmara de Diniz Gomes, o edifício foi, então, adaptado para os Paços do Concelho e para quartel da GNR (no R/c). Nas partes traseiras vieram instalar-se as Escolas, que aí funcionaram até meados do séc. XX.
Senos da Fonseca
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