segunda-feira, março 21, 2011

A BARCA DA “PASSAGE”


A barca da passage era ,desde os primeiros tempos em que as xávegas vindas da Costa Velha, da Srª das Areias, aportaram à Costa Nova, o único meio de acesso ao areal para onde tinham vindo fainar as companhas da pesca. Eram centenas, os pescadores empregues nas mesmas; mais o mulherio que ajudava no desembaraço e na escolha do peixe, e ainda os mercantéis. A que se juntavam os muitos almocreves que pela noitinha, burricos carregados  alombando com a sardinha, se embrenhavam por esses caminhos perdidos da serra.Ladeando vales e barrancos, para ao outro dia, logo de manhã, não faltar com a venda da prateada sardinha, lá para as beiras interiores e bairradas.

No início, ainda as companhas usaram enviadas para facilitar o transporte ao seu pessoal .Mas a confusão gerada, cedo indicou que o bom sentido era o da privatização (?!) daquele meio de transporte, deixando-o nas mãos de barqueiro, que, dono da sua própria embarcação, estava sempre disponível para fazer várias vezes ao dia –e até de noite – o transporte, de pessoal e material.



A largada da barca, sem hora rigorosa marcada, era anunciada por um toque singular, roufenho, saído de um búzio que se ouvia -nesses tempos isentos de outros arruídos incómodos -a um bom quarto de légua de distância.
Antes de largar dos moirões, o arrais dava uma olhadela lá para o fundo do caminho, a ver se divisava alguma alma atrasada. E quando tal sucedia, se a distância a percorrer não demorasse mais do que escassos cinco minutos – pelo cálculo do arrais, entendido nesse assunto! - adiava-se a partida .Certo é que tal adiamento, gerava, de imediato, uma zanguizarra dos diabos, com os passantes já embarcados escalabrados pela demora:

- Eh Ti Labareda . Astão vossomecê quer-nos fazer perder a maré ?...estipôr malino!…Por causa duma marafona atrasada ,que esteve, foi, entre pernas mais tempo códebido ,e agora nos faz esperar ?!.Largue mas é …homem dum raio!. Largue que temos freima de chegar á outrabanda .
-Calende-vos ou ides a nado, que ides mais depressa – respondia o arrais,moído de tanta algaraviada .

Chegada a Rosinha «Escudeira», a conversa mudava de tom e forma.Era imediatamente outra .Aquela gente era muito sabida.E então no fingimento :- umas doitoras !

-Ah Rosinha ,q’uim fim q’ue sempre achegastas ;filha ! Se não fossamos nós,o raio do Labareda não esp’rava por ti .Raios do home, c’anda sempre com o fogo entre pernas. E não há quem lhe acalme a marola.

                                     

                        O Labareda ( des. J.Antonio Paradela)

-Credo!...Fosse eu nova, e, cachopas!,….o pavio do Toino derreava -faiscava a Alzira «Saltoa»,mulheraça já cansada,enxuta, de convés corrido por tanta vaga, moradora lá para os Sete Carris. Só para adiantar conversa, para bisnagar .Para a galhofa.
O Labareda ria-se com tal desfaçatez.Ele sabia que era tudo boa gente.Aquilo eram tudo facécias.Pois numa astrapalhação, num momento mais doloroso, eram bem capazes de despir a roupa, para com ela agasalharem uma delas. Gente de acudir, solidária e amiga. Mas gente simultaneamente brincalhona, ladina, tarrinca, naqueles momentos de descontracção em grupo.
Ordem de largar,
o ajudante á proa enterrava a vara no ombro para aproar a barca a oeste .O arrais deixava-a descair um pouco, para logo dar ordem de meter a pá da borda. Leme a meio, caçava a escota retesando a vela com a dupla laçada na draga, fixando a mareação numa proa apontada ao trapiche da outra banda,ali ao lado do Salão do Arrais que, se o noroeste ajudava ,poderia ser alcançado em dois bordos.
Já por diversas vezes, o Labareda chamara a atenção, ao regedor, de que a mota devia ser deslocada para sul, aí uns cem passos, pois, se assim fosse, num só bordo, fazia-se a travessia .Se o vento era frescote – e quase sempre o era, bufando lá do noroeste - cinco a dez minutos eram mais que suficientes para laçar moirão na Costa Nova .

Durante a travessia era uma algazarra; a miudagem correndo a sentar-se no bico da proa, sonhando com o dia em que se sentasse ao leme, a retesar a escota ,e rumar ponteiro ao outro lado.

Os almocreves que tinham deixado os burricos a descansar na estrebaria da  «Bruxa» ,a recompor-se da jorna com palha fresca – pois que para cá tinham vindo carregados de azeite vindo lá das serranias,o melhor !- deitavam contas à vida na tentativa de ler o tempo. Imaginando como seria a noite, em que serra acima ,ladeando a ravina ,atravessando o riacho, metendo à desbanda por um atalho conhecido …toque… toque… , lá iam por entre pinheirais a zangalhar, assanhados com a ventania da noite que facilitava que por ali surgisse algum marmanjo da rapina. Percorrendo ligeiros os caminhos do interior a carrear a sardinha fresca. Por isso, e porque amanhecido o sol era tempo de entregar o carrego lá para as bandas de Viseu, havia que dar ao pé .Burro, e pimpão almocreve.

Por vezes aparecia para atravessar na barca, o João«Ruço»,exímio tocador da concertina que fazia as delicias dos embarcadiços. Encostado à barra da escota, atirava-se ao «vira que vira», esbofando a sanfona ,enquanto com dedos ágeis percorria os botões das notas .E logo duas pescadeiras saltavam, lestas, para o centro ,saltitando e rodopiando. Pés descalços «sapateando» nos paneiros ,enquanto a voz fina mas timbrada e maviosa da Joaninha «Cantadeira» se fazia ouvir, depressa denunciando a origem :



Meninas vamos ao bira
Ai ! que o bira
É coisa voa
Eu já bi dançar
O bira
Lá p’rós
Lados de Lisboa

Ai! bira» que bira,
E torna a birar,
As «boltas» do bira
São voas de dar

Enquanto isso, as cachopas num falazar grazina, aproveitando o ripanço daqueles breves momentos, lá iam em conversa onzeneira:

- Astão Rosinha? fostas a ultima a vir lá da vila .Deves saber nobidadas .Disque lá ,chopa !...

- Novas(?!), só que entrou na barra o iate do Ti Cachina, vindo lá da estranja .A Ana «Fradoca» foi esperar o homem, o Armando Ramízio .Logo à noite, lá p’ró Arnal, vai ser uma zanguizarra dos diabos .Sete meses de fastio, gentes !...,nem as pulgas incomodam. Chegada a hora, vai ser tempo de medrar menino .Idas ver - ia dizendo a Rosinha.

- E olha c’os tempos não estão nada p’ra isso, rapariga.Só vejo fidalgotas a cheirar o frescal, e a desdenharem. Que não presta, dizem !O que essas delambidas querem, é «dado» .Mas enganam-se .Que cá a Zefa, dado, só ò mêhome. E num é sempre !. C’ás vezes lá lhe caço uma felpa, a troco do festim. Que não é para o gabar – q’inté é p’rigoso com tanta serigaita a c’rer pastar - mas cá o meu Zé é danado p’rá brincadeira .Num é por ele ser o mêhome,mas aquele bardal prece c'anda sempre esgalfo pela jája.

- Ah!... Zefa ,c’alte …Tu sabes q’ué bom, porque nunca comeste doutra malga. Amorna-te aí…. raios! Tem relego nessa língua e não nos desinquetes,com essas toleimas.Mogadinha de mim que h´a benícias que nem escasso cheiro.

Outra figura que era habitual, de tempos a tempos aparecer a tomar o seu lugar na passagem, era o «amolador». Lá vinha empurrando o carrinho de roda com os apetrechos para colocar a gataria nos barros esfanicados, ou esmeril aconchegado. Pronto para afiar os navalhões da trupe das campanhas, ferramental indispensável ao exercício diário daquelas gentes, precisando do gume bem afiado, capaz de cortar papel em tiras de enfeitar .O ti Francisco da «Gaita», assim chamado por anunciar a sua presença de porta em porta, por uma gaita de beiços ,com sonoridade distinta e singular, que era o aviso para se ajuntar todo o material a necessitar de reparo, à porta dos palheiros, onde exercia o sei mister.

Ti «Gaita» –dizia maldosa a Berta «Lamaroa»- vossemecê não é capaz de me pôr três gatos numa racha, p’ra a aviar como nova?

-Asponho pois..não havia de m’astreber eu .Atão que é lá isso?. Cuida-te, ósdepois ,porque os gatos miam de noite, se incomodados, e gostam de tripa miúda - respondia sisudo o «Gaita», homem de pouca conversa fiada. Que fiado só os muitos calotes por trabalhos feitos àquela gente, a aguardar paga, à espera de melhor maré .

Tempo de chegar. O arrais media a distância, e, chegado o momento ,orçava, apontando a proa ao vento. Folgada a escota, recolhida a pá da borda para cima da tosta , o vento e a corrente levavam a borda da embarcação a beijar, suave, o trapiche a que acostavam, para descarrego das gentes.

Era um desaforo. Uma restolhada dos demónios .Todas queriam ser a primeira a colocar o pé descalço no tabuado da mota ,lestas para chegar à escolha e venda do peixe .Se o não havia fresco ,porque o mar não permitiu lanço ao meia lua ,carregava-se do escorchado. Que à falta de melhor ,também tinha clientela.
À volta, no regresso ai fim da jorna , era um queixumar de arrenega .

-Danado do mar! Escajunrrado.Aquele cão anda mais «seco» que trimbaldes de porco capado; o peixe branco está pela hora de morte, não se lha pode achegar .Mais caro c’ós pozinhos de maio, milagreiros , da botica do Ti Cunha – queixava-se a Ana «Espadela» maneando a cabeça num esgar de nojo, ascupindo para a borda..

Mal , acomparado, - que comparações só se podem fazer com os santos - era assim :
À ida :
- Maria,adonde vais tão pimpona ?!
-Para a «festa!!!»
À vinda :
- Maria ?:- de onde vens , cachopa triste:
-Da… «fe...sta…»
SF 8Março 2011)



















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