terça-feira, abril 14, 2020



OS FRALDOCOS




Ora na semana seguinte, enquanto os papéis não chegavam para os entregar ao frei Pachão, prior na capelinha da Costa Nova, num belo dia, quando a barca ao fim da venda trazia as pescadeiras para regresso à vila, o Tóino notou uma tristeza na Maria, e até descobriu umas furtivas lágrimas que enevoavam o seu lindo olhar. E dá de perguntar :
- Maria !, c’a tens tu, cachopa, que na te vejo rir ? O que te padece ?
            Iam já em direcção à Maluca, andados que estavam uns bons cem metros.
- Nada Tóino, nada home, deixa lá… num te apoquentes que não é nada.
Mas a Zefa «Tarrinca», companheira da Maria, não escondeu a razão da tristeza da Maria, e dá de opinar :
- Olhe Vossemecê !, ela está assim porque o Manuel «Charrua», aquele desavergonhado, aperguntouse ela não queria experimentar o fogo dele, que tem mais labareda que o do Ti «Tóino». Mancatufe ! Pilado seco !
- Quê ?! - grita o Tóino «Labareda», pondo mão ao xarolo, puxando-o todo de bombordo, obrigando a barca a uma viradela em cima do eixo. E assim dando a volta, caçou a escota fortemente. A barca pareceu querer saltar e chegar mais depressa ao ponto de partida.
- Esse porco vai ver. Coso-lhe as tripas e dou-as a comer à canzoada c’anda p’raí esgalfa.
E numa orça felina, apertada, para ganhar tempo, mal a barca encosta ao moirões(desta feita um pouco mais bruscamente do que o habitual), lépido, o «Labareda» salta para o trapiche enquanto grita :
- Passem aí uma laçada ao moirão, que eu vou ali e já venho.
- Ah hóme da minha alma, não me aflijas. Pode ser a tua desgraça e a minha - implora Maria que faz tenção de agarrar o Tóino .
Mas este não deu hipótese, e a correr entrou como um furacão pela taberna da Ti «Moura», adentro, fechando de um sopetão a porta, dando-lhe uma volta à chave, guardando-a no bolso. A passo mais repousado foi encostar-se à varanda da tasca e pediu um copo de três. A «ti Moura» vendo o alvoroço que lhe ia na cara, interpelou-o:
- Que foi isso «Labareda» ? O que te fez voltar para trás ? Vens com cara de poucos amigos…

- Olhe «ti Moura» : andam p’ra aí uns fraldôcos a fazerem de homens, a olhar, gulosos, p’ra aquilo que tem dono. Ora eu quero certificar-me o que valem os valentões. Traga-me aí um alguidar para apanhar as tripas destes badólas moinantoManeie-se … que deixei o «animal» mal amarrado.
A um canto, numa mesa, em frente de três copos meio «entornados», estava o «Charrua», acompanhado pelo Xico da «Engrásia», mai-lo Pinto «Canastrão». Deveriam estar a falar dos dixotes, pois logo que viram o Tóino com cara furibunda, calaram-se,  abotoando no semblante a mais séria preocupação.

- Vá!... disse o Tóino, ao Xico e ao Pinto ; lá p’ra fora. E já!...  Se não querem que vos cape, também .
E sugigando-o s pelo camisete arrancou-os do chão, levando-os suspensos nas mãozorras. E enquanto a «Moura» abria a porta, o Tóino atirou borda fora os franganotes que foram mergulhar no areal em frente da tasca, para espanto dos passantes. Voltando atrás, o Tóino agarrou na mesa avantajada, erguendo-a acima da cabeça, lançando-a sobre o «Charrua» que ficou atrunchado contra a parede, atordoado. O Tóino agarrou-o pelos gorgomilhos arrastando-o para a porta :
- Já que te andas a armar em olhudo, vou-te pôr como a tua mãe te trouxe ao mundo, para todos verem o pilado tísico que és. E se tu, ou outro, voltarem a poisar os olhos na minha Maria, faço-vos para morcelas.
E num repente puxou do navalhão e, num golpe fulminante e certeiro, cortou os atilhos dos calções do «Charrua», que lhe caíram pernas abaixo, deixando à mostra as suas partes íntimas. De facto, pouco invejáveis. Viu-se!




 " O Charrua" 


- Vá !...- diz-lhe o «Labareda», vai à tenda da Henriqueta «Pardala» e traz-me um copo de três, se não queres que eu te amanhe.               
O Manel, a tremer, lá foi naquela triste figura para gáudio de graúdos e chocarrice dos miúdos, que gritavam atrás : - Olha o «Pilado triste».
Alcunha de que o «Charrua» nunca mais se libertou. E que o obrigou a pôr os pés, areia fora, na procura de paragens onde a novidade se não soubesse. Mas a mesma correu na proa das enviadas com o vento, e o «Pilado triste» só parou, onde Portugal findava. Em Olhão, nas artes do atum.
                       
Encerrada a questão, o Tóino voltou à barca da passage, agora crismada de Srª da Anunciação, e metendo a proa à Maluca, ali chegou num ápice, que o vento era frescóte.
A lição iria servir para que todo o mundo das companhas olhasse para a Maria com um respeito que levava alguns, mais medrosos, até - e à cautela - a baixarem os olhos, só para os não cruzarem com os da Anunciação «Labareda».

SF
(gravura Ábio de Lápara)













Sem comentários:

  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...