José António Paradela: um fazedor de imagens poéticas.
Nos territórios bafejados pelo acre salgado da maresia, por entre ruas, ruelas e becos sem saída, poderia ter acontecido, nesse tempo longínquo da nossa meninice que, saltadas as barreiras “impostas” pelas origens, tivesse cruzado em uma qualquer delas com o ainda então, “só”, José António. Calcorreando as congostas escondidas da vila, ávido como ele em conhecer o mundo humano das nossas gentes que se escondia por detrás das portas que para elas abriam (ou fechavam), das janelas entreabertas que deixavam escapar os murmúrios lamurientos dos que lá dentro sofriam, ou de uma ou outra habitual desavença de vizinhança que terminasse em desgadelhado desforço. Mas facto é que não aconteceu...
Os nossos territórios eram diferentes....
Conheci o José António quando, responsável no Illiabum, decidi desafiar o Macedo a fazer uma exposição de trabalhos seus, e aquele me sugeriu chamar, para a mesma, o Paradela. A exposição concretizou-se com assinalável êxito. Os visitantes ao toparem com os trabalhos daqueles incipientes artistas, ainda então desconhecidos, esfregaram os olhos para melhor apreciarem nos desenhos esquemáticos expostos, a dimensão humana das nossas gentes. Intuída nas linhas que acentuavam os requebros ondulantes de uma peixeira, ou nos entroncados peitorais de um marnoto correndo por entre o vidrado da marinha. Ou fundida na majestática figura do pescador no dóri, hoje ainda,ex-libris da antologia artística ilhavense, amiúde trazido à cena.
Dessa vivência colaborante nasceu uma profunda amizade com o José António que,perdurou vida fora em encontros sucessivos.Acima de tudo desejados e por isso provocados, de parte a parte.
Havia fortes pontos de encontro na visão de um mundo diferente que queríamos. Em mim uma mais viva e actuante impulsão de querer mudar tudo a qualquer preço. No Paradela, uma visão muito mais poética a que nunca renegou, incluindo-a na carreira profissional onde mais do que desenhar estruturas pretendia ser um fazedor de cidades novas, nascidas de conceitos urbanísticos mais extensos do que o simples e gasto respeito pelo cumprimento único das básicas necessidades humanas, Antes procurando o equilíbrio entre a estrutura urbana projectada e o espaço natural onde se insere, que se pretende o menos ofendido possível. Presente a acompanhá-lo no risco criativo, a vivência apreendida na “Rua Suspensa dos Olhos” da sua infância, onde os olhos medravam a cada dia e o espaço era cada vez mais apertado . Ruelas em que os dias corriam devagar, mas onde os “sorrisos” inundavam a calçada, amaciando as pedras para adoçar e tornar menos penoso o seu calcorrear por gente de bem, quase feliz. Onde para se ser feliz não era preciso “ter”, mas “saber sê-lo”.
O Paradela era uma daquelas espécies raras de artista plurifacetado, essencialmente figurativo. Dotado de um olhar delicado e minucioso em permanente atenção aos sinais, fossem eles claramente objectivos ou mais fugidios sintomas subjectivos, a arquitectura não esgotou a motivação afectiva que tinha ganas de exprimir de outro modus. Para isso botou banca diversa para dar expressão a toda uma motivação estética e poética, fosse nas palavras lavradas, fosse nas rondas fotográficas, fosse na animação cinematográfica. O Paradela, transmudado no Ábio de Lápara, cineasta , gostava de recriar imagens recheadas de beleza escondida, das coisas e dos seres (e até palavras), acompanhadas de um pendor (descritivo) poético, em exercício de descoberta de emoções a cada olhar. Nesta faceta de cinéfalo amador, nos seus “Tulipa Filmes”, foi mais do que nos restantes fazeres, fiel à sua terra e às suas gentes, numa obra onde exprimiu um permanente e preocupado pendor humanista.
O mesmo ilhavismo telúrico vertido nos livros que levou ao prelo, dos quais ressalta com evidência a herança atávica às suas gentes, trazendo ao leitor a beleza simples mas plena das virtualidades humanas daquela gente simples, projectadas pelo doce mel das suas palavras para uma compreensão grandiosa.
Afanoso pesquizador (em palavras ou imagens) das suas gentes e de tudo o que dizia respeito à sua Terra, bem poderemos dizer : Ílhavo foi o motivador (o produtor) da sua circunstância: nasceu em leito humilde, viveu em congosta onde moravam gentes de negro “enfeitadas”, que partilhavam afectos, e sofriam solidariamente juntas, as desditas.Viúvas de homens ausentes ,na presença que não na memóia,pescadeiras curvadas ao peso da canastra, mas não resignadas ou vencidas, cavalgando os areais em dias de nevoeiro ou soleira escaldante, no ganho suado do sustento dos seus. Tardes sobrantes da escola cumprida, sentado no rebate de pedra com os “Ti Xis” que batiam a pederneira em procura da chispa que lhes alimentasse as horas frias da anciania, a ouvir as estórias .Estórias ,muitas....sempre muitas, de ternurenta saudade do mar de que já só ouviam o murmúrio, mas de quem tinham filial memória.
“Por quê esta saudade de um tão imenso mar de sofrimento(?) : porque ....conhecemo-lo em todas os sulcos, talvez demasiadamente bem, em todas as antigas histórias por contar”....
Estórias que o puto José António registou então ( e mais tarde evocou, amiúde, trazendo-as ao proscénio das suas imagens ou palavras ): –
“Elas são parte importante do que deles vive naquele espaço entre mim e eu: Incorpóreo ser que me acompanha carregado de tantas janelas secretas por eles habitadas” .
Ficarão para memória futura perdurante (em Ílhavo), as três jóias da coroa que, no domínio arquitectural, o traço inconfundível de excelente profissional é exuberantemente patente. Todas plenas de um ajustado equilíbrio arquitectónico à função requerida. A arte é das coisas mais duradouras na superação do esquecimento. O quartel dos AHBVI agora reconvertido( pontapé de saída de todas as restantes),o edifício sóbrio, imponente qb da Câmara Municipal e o agora Centro de Religiosidade Marítima (um excelente e equilibrado exercício de reconversão), manterão viva a memória a justificar merecido afecto dos vindouros, pelo “nosso” José António Paradela(Ábio de Lápara nos intervalos).
Desaparece com o Paradela, mais um amigo. Já se foram tantos que lhes perdi a conta, que não a lembrança. Parece-me estranho aceitar estas continuadas perdas com menos desespero, tal a continuada habituação. E esperar a seguinte....Rendido, mas não convencido, da inutilidade de nos cumprirmos, humanamente diferentes.
O que nos resta? Se já não podemos alegrar os encontros com as palavras, façamos do silêncio da lembrança, ronda calada da saudade.
Senos da Fonseca (Março 2023)
3 comentários:
Fico sempre " suspensa " das suas palavras, Senos, diga o que disser, escreva o que escrever. Ainda a procissão não saiu do adro e os olhos a embaciarem já. Raios partam este " gajo" que tenta escavar mais uma ruga na minha pele mais que seca e baça!Não tenho dinheiro para cremes bons, home. Fale de futebol, de telenovelas, de barcos e barquinhos, não me fale de pessoas. Dessas pessoas que nos assaltam sem aviso prévio e ficam em nós como lapas.O Ábio, o Tibério, o Cachim, o Torrão, a Zeca fazem parte desse grupo que estão em mim. Livre-se de morrer apressadinho à minha frente.
Grande texto sobre o Amigo José Paradela.
Obrigado pela partilha.
Forte abraço.
Caros amigos.Permitam-me uma confissão.Es te texto publicado passada que foi uma semana da perda do JA Paradela,poderá parecer que foi rebuscado.Pensado.Não...ele foi escrito na noite do adeus.Há testemunhas disso mesmo.Mas propositadamente engasguei-me no tempo.Obrigado.SF
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