segunda-feira, março 04, 2013

POSTAL nº 6
 
                                   
 
José Estevão e a «Joana Maluca»

Ria de um azul amansado pela brisa que lhe encarquilhava a pele. Hoje, a Ria não tinha levado o fato que deus lhe deu, «a passar a ferro». Dias !...O ar estava poeirento e as serranias deixaram de avistar, retirando dimensão ao vale de água que de Ovar até ao  Porto de Mira  se aninha  a seus pés.

Botadas as pernas ao caminho, que se fazia já tarde, fui tocado pelo vento até às portas da Costa-Nova. Depressa me encontrei com o «Palheiro»  que muitos, por engano, pensam mesmo ser o original, do celebérrimo José Estevão.
E parando, relendo as palavras de Eça que estão gravadas à sua portagem, dei comigo a imaginar o que teriam sido esses belos tempos da descoberta e feitura do local baptizado por Luís «da Bernarda», de Costa-Nova. Para que se não confundisse esta (a nova), com a Costa Velha de S. Jacinto, pousio dos primeiros meias-luas que achaparam as Artes Grandes ao mar.

Aquele «Palheiro», na verdade, foi o que serviu de habitação ao filho do grande tribuno, Conselheiro Luís Magalhães. Erguido sobre o anterior que seu pai tinha comprado, em 1840, ao mercantil de Viseu, Marinho de seu nome. Que teria sido umas das primeiras simplórias edificações erguidas na Companha dos «Barretos», aquando da sua  aterragem na praia, após a escapadela de S. Jacinto.
José Estevão descortinara desde logo grande potencial no lugar estratégico que os Barretos «descobriram». Se fosse feita estrada para Aveiro, ou ligação a Ílhavo, digna desse nome, o escoamento do peixe e o acesso das Companhas estava muito facilitado.
José Estevão afirmaria  ter comprado o Palheiro para repouso de sua Esposa D. Rita Moura Miranda[1]. Mas o certo é que sempre que a vida atribulada do incansável tribuno, o  permitia, José Estevão refugiava-se no seu tosco palheirinho, a que foi fazendo alindamentos e melhorias, à procura de merecido repouso. E como nos diz o seu filho, Conselheiro Magalhães, era no «quarto voltado ao mar por onde entrava a maresia», que José Estevão trabalhava as suas ideias para aquelas que foram as maiores peças oratórias de que há memória na história parlamentar portuguesa. 

Isso não o impedia de visitar, diariamente, as Companhas. Para se informar do andamento das capturas, e assistir, deslumbrado, à heroicidade e destemor daqueles homens a entrarem ou a saírem, batendo na rija vaga. Eram um exemplo vivo de que também na Terra havia deuses menores, dignos de um  Olimpo. Sempre que uma daquelas almas era atingida pelo desfavor da vida e levada perante o Tribunal, José Estevão vestia a toga e chegava-se à tribuna para erguer o seu vozeirão em defesa do infortunado pescador. Era ainda, a José Estevão, que os pescadores solicitavam intercedência para contratualizar, com os financiadores da Companha, os magros rendimentos do «quinhão», sempre avaramente concedido pelos senhores do capital.

Mutas figuras da política, e das letras, eram assídua presença do seu Palheiro.

José Estêvão fazia gala em ali receber muitos dos seus amigos, entre os quais Mendes Leite, companheiro de Coimbra e do exílio, fiel e inseparável companheiro; Sebastião de Carvalho e Lima, um espírito de rara energia e grande honestidade; Agostinho Pinheiro, seu companheiro de imprensa; a família Pinto Basto que lhe era muito chegada, e muitos outros: os Regala, os Viscondes de Almeidinha, os Mourões, o Arcebispo Bilhano, os Alcoforados, e tantos outros.
José Estevão apressava-se então a enviar recado  à sua grande amiga Joana «a Maluca», senhora dos terrenos que ficavam à distância de um atravessar directo da ria. A Joana Rosa, era uma mulher de luta. Mãe de nove filhos, avó de sessenta e seis netos, A Joana  era uma mulher irrequieta, mexida e brava, cuja estatura estava bem de acordo com o seu feitio. De compleição algo máscula, senhora de boa e desenvolta faladura, sabia bem receber.Com fidalguia, com lauta e bem recheada mesa, onde requintadamente espalhava vitualhas de apurado regalo, para o paladar e para o olho. Vinham em primeiro os escabeches numa molhanca de vinho onde os ditos tinham curado a adquirir sabores divinais. Para tentear apresentava uma casta de avinhados salpicões a que o fumeiro tinha dado cor de um rosa terra aveludado capaz de  tentar o mais enfastiado. Seguiam-se as caldeiradas do melhor peixe que o mar criava, a nadarem num azeitado açafrão, temperado com um pouco – q.b – de um branco bairradino. Ainda o repasto ia a meio. Vinham fumegantes  as caçoilas «negras» de aradas, com a chanfana, que previamente escaldada na hortelã era, depois de forte marinadela, cozida em vinho de boa cepa. Eram no mínimo três, as fervuras necessárias para obter o apurado sabor. Vitualha que aquelas gentes gandaresas tinham trazido consigo e se viria a mostrar emblema local. Tudo regado no melhor bairradino, a escorregar, fresco e macio, aveludado, pelas gargantas dos comensais.

 Terminado o opíparo repasto, o grupo vinha para o alpendre sentar-se em cómodas espreguiçadeiras, onde se gastavam horas na moedeira, enquanto se reconfortava o espírito com puros havanos, que a dona de casa distribuía, servindo-se e degustando ela própria, um excelente puro.

Lá para a meia tarde os convivas levantavam ferro, agradecendo o excelente repasto, e numa curta atravessadela das terras da «Maluca», arribavam à tasca da «Norta», espécie de estalagem de fim de curso, posto para recolha e tratamento dos burricos, enquanto no altar da venda se bebericavam uns copos para retemperar a alma, e vivificar o corpo. Ali se reuniam almocreves recuperando forças para o tropear nocturno das serranias traiçoeiras. Ali, pescadores beberricavam o último copo antes de botar pés à vila. O dia nas Companhas tivera duas idas à maré, e os corpos estavam doridos, a pedir enxergão. Mas só há noitinha chegavam a Juncal Ancho, e era, pois isso necessário, meter combustível para a viage… Havia, ainda, uma ou outra pescadeira, que depois de desorçar a canastra ao portal, não enjeitava encostar a barriga ao balcão e pedir à Ti Norta :

 -vá tiazinha; dê-me ai um traçadinho para me tratar as fraquezas deste corpo arrebentadinho, moidinho, quase a deitar os bofes pela boca…. ai vida .

Ora num desses belos fins de tarde, no tasco estava o valentão, bazófio e inquisilador, o Bisnaga «Tovão», almocreve de mau génio, beberrão, homem de má fama, com contas largas nos costumes  que o conheciam da vermelhinha das feiras assinaladas. Era lá das bandas de Viseu. Já encilhara o burrico. E pronto, entrou tasca adentro, já de grão na asa, pronto a escorropichar mais uns tintos. Bate forte no «altar» da loja a pedir com os seus habituais maus modos e de um modo enfatuado: – vá maneie-se, velha de um raio. Que é tarde e tenho de trepar a serra. Verta-me aí dois de três; que um é para a cova de um dente danado. 

Só que no momento a «Norta» tinha distinguido no arco da porta o Sr. José Estevão que surgira prazenteiro e respeitador, dando as boas tardes à gente de bem que ali parava. José Estevão procurava o arrais Thomé Ronca, para que este o levasse, a si e aos convidados, ao outro lado. E a «Norta», grande amiga do político, logo virou as costas ao «Bisnaga», leda para cumprimentar «os Senhores» importantes que vinham com José Estevão.

Logo o Bisnaga estrebuchou de danação, mostrando ganas de semear alarido, a meijengrar alguma. Nada boa:

-Que é lá isso, desatender-me a mim, homem da cidade dos Bispos, para atender este fidalgote apressado… Para eles tenho uma folhinha de matar bácoros, que abre num ápice a barriga a fidalgos bem aviados. Daqueles que ficam à porta e não entram, para não sujarem as botinas mulherengas.

José Estevão manteve-se hirto, impassível, levantou o peito, cofiou o farto bigode,  preparado para responder ao malino:

-Olhe lá ó andarilho lá da serra? Você não é o mata burricos lá de Mangualde? Pois olhe que eu não o conheço senão pela má fama, e não estou nada interessado, em conhecê-lo. Vá á sua vida que eu vou à minha.

-Ora! ora…, atira o «Bisnaga : ora aqui os homens – já eu o sabia – são tipo ovos-moles. Ouvem o ronco do mar e mijam-se pelas pernas abaixo…

De uma mesa lá do canto esconso ergue-se uma figura, alta como uma torre, homenzarrão tão cheio de força que os seus olhos mesmo que meigos infundiam silencioso respeito.

Postado em frente ao Bisnaga, o Thomé Ronca mete-lhe uma manápula ao ombro enquanto troveja:

-Que é isto? Pariu aqui a galega, ou foi a mãe deste burriqueiro que o veio deitar fora? Olha lá ó chibante – se voltas a dizer o que quer que seja dos homens da minha terra, acabam-se aqui as fanfarronices. Já hoje e aqui mesmo.Com desprezo voltou as costas ao almocreve, dirigindo-se ao altar, pedindo um traçado à «Norta». O Bisnaga julgando-o distraído, deu de fazer rapola e em grande restolhada, rapa da vara que sempre o acompanhava, e dá de despejar o lódão. Uma varada mesmo ao endireito do ombro do Thomé. Só que este desconfiara do mafarrico, habituado a atacar pela noite, às escondidas. E num ápice, lesto, voltou-se. Com a manápula habituada a enlaçar o reçoeiro, enganchou a vara. De imediato puxou por ela o marau, e com uma punhada, aplicou tamanho bofetão ao burriqueiro que este foi lançado por cima do altar da tasca,indo aterrar, de borco, entre as pipas bairradinas. O Thomé foi lá buscá-lo. O  asno abria a boca como rã à procura de ar fresco. Agarrando  o fraldoco  pela cilha que lhe atava as calças, arrastou-o de borco, lançando-o borda fora, à ria.

-Aqui d’el rei quem m’ acode. Eu sou da serra não sei nadar. Acudam….à d’el rei!!Salvai-me que eu dou-vos azeite: – dizia o «Bisnaga» esbracejando na água.

-Atão mijas-te ou não, fraldoco?      

E aproveitando o sopro do Norte, os convivas de José Estevão, rindo-se da restolhada, lá embarcaram para a Costa Nova, abicando ao palheiro à porta do qual a D. Rita esperava o grupo dizendo:

-Que lauto banquete. Vindes bem refastelados, vejo eu. Agora para a noite ireis ter uma canjinha da tainha de pinta amarela, com um grãozinho de arroz em fio de azeite.

 -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Quem me contou esta estória que verto em rabiscos lavrados pelo meu punho? Advinhais, estou certo .Pois a Zefa. Estória que ouviu a seu pai nos invernos inteiriços,  a charriscar lume, a catar um ou outro feijão que boiava à tona do caldo, à espera de apuro.

A Tibéria, essa, ficara em casa, Que os artelhos chiavam de mal sádios. Excessos; excessos da boca, porque nesta altura já não há bródios ou funções  que espaireçam.  

SF (Março 2013)



[1] Consultar em www.senosfonseca.com (Factos & História) «A história do Palheiro de José Estevão».

POSTAL nº 6

Sem comentários:

A « magana » que espere....  Há dias que  ainda me conseguem trazer interesse renovado, em por cá estar  por mais uns tempos. Ao abrir logo ...