POSTAL nº 6
POSTAL nº 6
José Estevão e a «Joana Maluca»
Ria de um azul amansado pela
brisa que lhe encarquilhava a pele. Hoje, a Ria não tinha levado o fato que
deus lhe deu, «a passar a ferro». Dias !...O ar estava poeirento e as serranias
deixaram de avistar, retirando dimensão ao vale de água que de Ovar até ao Porto de Mira se aninha a seus pés.
Botadas as pernas ao caminho, que
se fazia já tarde, fui tocado pelo vento até às portas da Costa-Nova. Depressa
me encontrei com o «Palheiro» que muitos,
por engano, pensam mesmo ser o original, do celebérrimo José Estevão.
E parando, relendo as palavras de
Eça que estão gravadas à sua portagem, dei comigo a imaginar o que teriam sido
esses belos tempos da descoberta e feitura do local baptizado por Luís «da
Bernarda», de Costa-Nova. Para que se não confundisse esta (a nova), com a
Costa Velha de S. Jacinto, pousio dos primeiros meias-luas que achaparam as Artes Grandes ao mar.
Aquele «Palheiro», na verdade, foi
o que serviu de habitação ao filho do grande tribuno, Conselheiro Luís Magalhães.
Erguido sobre o anterior que seu pai tinha comprado, em 1840, ao mercantil de Viseu,
Marinho de seu nome. Que teria sido umas das primeiras simplórias edificações
erguidas na Companha dos «Barretos», aquando da sua aterragem na praia, após a
escapadela de S. Jacinto.
José Estevão descortinara desde
logo grande potencial no lugar estratégico que os Barretos «descobriram». Se fosse
feita estrada para Aveiro, ou ligação a Ílhavo, digna desse nome, o escoamento
do peixe e o acesso das Companhas estava muito facilitado.
José Estevão afirmaria ter comprado o Palheiro para repouso de sua
Esposa D. Rita Moura Miranda[1].
Mas o certo é que sempre que a vida atribulada do incansável tribuno, o permitia, José Estevão refugiava-se no seu
tosco palheirinho, a que foi fazendo alindamentos e melhorias, à procura de
merecido repouso. E como nos diz o seu filho, Conselheiro Magalhães, era no
«quarto voltado ao mar por onde entrava a maresia», que José Estevão trabalhava
as suas ideias para aquelas que foram as maiores peças oratórias de que há
memória na história parlamentar portuguesa.
Isso não o impedia de visitar, diariamente, as Companhas. Para
se informar do andamento das capturas, e assistir, deslumbrado, à heroicidade e
destemor daqueles homens a entrarem ou a saírem, batendo na rija vaga. Eram um
exemplo vivo de que também na Terra havia deuses menores, dignos de um Olimpo. Sempre que uma daquelas almas era
atingida pelo desfavor da vida e levada perante o Tribunal, José Estevão vestia
a toga e chegava-se à tribuna para erguer o seu vozeirão em defesa do infortunado
pescador. Era ainda, a José Estevão, que os pescadores solicitavam
intercedência para contratualizar, com os financiadores da Companha, os magros
rendimentos do «quinhão», sempre avaramente concedido pelos senhores do capital.
Mutas figuras da política, e das
letras, eram assídua presença do seu Palheiro.
José Estêvão fazia gala em ali
receber muitos dos seus amigos, entre os quais Mendes Leite, companheiro de
Coimbra e do exílio, fiel e inseparável companheiro; Sebastião de Carvalho e
Lima, um espírito de rara energia e grande honestidade; Agostinho Pinheiro, seu
companheiro de imprensa; a família Pinto Basto que lhe era muito chegada, e
muitos outros: os Regala, os Viscondes de Almeidinha, os Mourões, o Arcebispo Bilhano,
os Alcoforados, e tantos outros.
José Estevão apressava-se então a
enviar recado à sua grande amiga Joana «a
Maluca», senhora dos terrenos que ficavam à distância de um atravessar directo
da ria. A Joana Rosa, era uma mulher de luta. Mãe de nove filhos, avó de
sessenta e seis netos, A Joana era uma mulher
irrequieta, mexida e brava, cuja estatura estava bem de acordo com o seu
feitio. De compleição algo máscula, senhora de boa e desenvolta faladura, sabia bem receber.Com
fidalguia, com lauta e bem recheada mesa, onde requintadamente espalhava
vitualhas de apurado regalo, para o paladar e para o olho. Vinham em primeiro
os escabeches numa molhanca de vinho
onde os ditos tinham curado a adquirir sabores divinais. Para tentear
apresentava uma casta de avinhados salpicões a que o fumeiro tinha dado cor de
um rosa terra aveludado capaz de tentar o
mais enfastiado. Seguiam-se as caldeiradas do melhor peixe que o mar criava, a
nadarem num azeitado açafrão, temperado com um pouco – q.b – de um branco bairradino.
Ainda o repasto ia a meio. Vinham fumegantes as caçoilas «negras» de aradas, com a
chanfana, que previamente escaldada na hortelã era, depois de forte marinadela, cozida em vinho de boa cepa.
Eram no mínimo três, as fervuras necessárias para obter o apurado sabor. Vitualha
que aquelas gentes gandaresas tinham trazido consigo e se viria a mostrar
emblema local. Tudo regado no melhor bairradino, a escorregar, fresco e macio,
aveludado, pelas gargantas dos comensais.
Terminado o opíparo repasto, o grupo vinha
para o alpendre sentar-se em cómodas espreguiçadeiras, onde se gastavam horas na
moedeira, enquanto se reconfortava o espírito com puros havanos, que a dona de
casa distribuía, servindo-se e degustando ela própria, um excelente puro.
Lá para a meia tarde os convivas
levantavam ferro, agradecendo o excelente repasto, e numa curta atravessadela
das terras da «Maluca», arribavam à tasca da «Norta», espécie de estalagem de
fim de curso, posto para recolha e tratamento dos burricos, enquanto no altar
da venda se bebericavam uns copos para retemperar a alma, e vivificar o corpo. Ali
se reuniam almocreves recuperando forças para o tropear nocturno das serranias
traiçoeiras. Ali, pescadores beberricavam o último copo antes de botar pés à
vila. O dia nas Companhas tivera duas idas à maré, e os corpos estavam doridos,
a pedir enxergão. Mas só há noitinha chegavam a Juncal Ancho, e era, pois isso
necessário, meter combustível para a viage…
Havia, ainda, uma ou outra pescadeira, que depois de desorçar a canastra ao portal, não enjeitava encostar a barriga ao
balcão e pedir à Ti Norta :
-vá tiazinha; dê-me ai um traçadinho para me tratar
as fraquezas deste corpo arrebentadinho, moidinho, quase a deitar os bofes pela
boca…. ai vida .
Ora num desses belos fins de
tarde, no tasco estava o valentão, bazófio e
inquisilador, o Bisnaga «Tovão», almocreve de mau génio, beberrão, homem de
má fama, com contas largas nos costumes que o conheciam da vermelhinha das feiras assinaladas. Era lá das bandas de Viseu. Já
encilhara o burrico. E pronto, entrou tasca adentro, já de grão na asa, pronto a
escorropichar mais uns tintos. Bate forte no «altar» da loja a pedir com os
seus habituais maus modos e de um modo enfatuado: – vá maneie-se, velha de um raio. Que é tarde e tenho de trepar a serra.
Verta-me aí dois de três; que um é para a cova de um dente danado.
Só que no momento a «Norta» tinha
distinguido no arco da porta o Sr. José Estevão que surgira prazenteiro e
respeitador, dando as boas tardes à gente de bem que ali parava. José Estevão
procurava o arrais Thomé Ronca, para que este o levasse, a si e aos convidados,
ao outro lado. E a «Norta», grande
amiga do político, logo virou as costas ao «Bisnaga», leda para cumprimentar
«os Senhores» importantes que vinham com José Estevão.
Logo o Bisnaga estrebuchou de
danação, mostrando ganas de semear alarido, a meijengrar alguma. Nada boa:
-Que é lá isso, desatender-me a
mim, homem da cidade dos Bispos, para atender este fidalgote apressado… Para eles
tenho uma folhinha de matar bácoros, que abre num ápice a barriga a fidalgos
bem aviados. Daqueles que ficam à porta e não entram, para não sujarem as
botinas mulherengas.
José Estevão manteve-se hirto, impassível,
levantou o peito, cofiou o farto bigode, preparado para responder ao malino:
-Olhe lá ó andarilho lá da serra?
Você não é o mata burricos lá de Mangualde? Pois olhe que eu não o conheço
senão pela má fama, e não estou nada interessado, em conhecê-lo. Vá á sua vida
que eu vou à minha.
-Ora! ora…, atira o «Bisnaga : ora
aqui os homens – já eu o sabia – são tipo ovos-moles.
Ouvem o ronco do mar e mijam-se pelas pernas abaixo…
De uma mesa lá do canto esconso
ergue-se uma figura, alta como uma torre, homenzarrão tão cheio de força que os
seus olhos mesmo que meigos infundiam silencioso respeito.
Postado em frente ao Bisnaga, o
Thomé Ronca mete-lhe uma manápula ao ombro enquanto troveja:
-Que é isto? Pariu aqui a galega,
ou foi a mãe deste burriqueiro que o veio deitar fora? Olha lá ó chibante – se voltas a dizer o que quer
que seja dos homens da minha terra, acabam-se aqui as fanfarronices. Já hoje e
aqui mesmo.Com desprezo voltou as costas ao almocreve, dirigindo-se ao altar, pedindo um traçado à «Norta». O
Bisnaga julgando-o distraído, deu de fazer rapola
e em grande restolhada, rapa da vara que sempre o acompanhava, e dá de despejar
o lódão. Uma varada mesmo ao
endireito do ombro do Thomé. Só que este desconfiara do mafarrico, habituado a
atacar pela noite, às escondidas. E num ápice, lesto, voltou-se. Com a manápula
habituada a enlaçar o reçoeiro, enganchou
a vara. De imediato puxou por ela o marau, e com uma punhada, aplicou tamanho
bofetão ao burriqueiro que este foi lançado por cima do altar da tasca,indo
aterrar, de borco, entre as pipas bairradinas. O Thomé foi lá buscá-lo. O asno abria a boca como rã à procura de ar fresco.
Agarrando o fraldoco pela cilha que lhe
atava as calças, arrastou-o de borco, lançando-o borda fora, à ria.
-Aqui d’el rei quem m’ acode. Eu
sou da serra não sei nadar. Acudam….à d’el rei!!Salvai-me que eu dou-vos azeite:
– dizia o «Bisnaga» esbracejando na água.
-Atão mijas-te ou não, fraldoco?
E aproveitando o sopro do Norte,
os convivas de José Estevão, rindo-se da restolhada, lá embarcaram para a Costa
Nova, abicando ao palheiro à porta do qual a D. Rita esperava o grupo dizendo:
-Que lauto banquete. Vindes bem
refastelados, vejo eu. Agora para a noite ireis ter uma canjinha da tainha de
pinta amarela, com um grãozinho de arroz em fio de azeite.
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Quem me contou esta estória que
verto em rabiscos lavrados pelo meu punho? Advinhais, estou certo .Pois a Zefa.
Estória que ouviu a seu pai nos invernos inteiriços, a charriscar lume, a catar um ou outro feijão
que boiava à tona do caldo, à espera de apuro.
A Tibéria, essa, ficara em casa, Que
os artelhos chiavam de mal sádios. Excessos;
excessos da boca, porque nesta altura já não há bródios ou funções que espaireçam.
SF (Março 2013)
POSTAL nº 6
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