Nota. Por vezes ,ou quase sempre, os trabalhos lentos de procura de factos(porque é de factos que se contrói a história) afasta-me de me ter ensaido noutros caminhos.Aqui vai um pouco ...de um trabalho que me deliciou....
OS MAIAS NA COSTA -NOVA.
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Logo muito cedo – Ega – que na primeira manhã não apreciara a hora madrugadora, era acordado pelo movimento do local, pois a «mota» contígua à casa, entrando ria dentro, era local preferido pelas peixeiras para aí lavarem o peixe, e o encanastrar. Também ali era local de grande bulício, com os variados mercantéis a carregar o peixe salgado em barricas, encanteirando-as em barcas que o iriam levar para os diversos entrepostos postados ao longo da laguna, ou rio acima, lá para as faldas das serranias beirãs.
Descobriu assim Ega, o trabalho esgalmido destas gentes, rostos mortificados pelo esforço no ganho de uns parcos rendimentos que lhes permitem, pouco mais, que a sobrevivência no dia-a-dia. E à janela, em situação privilegiada para observar a lufa-lufa, Ega deita o olhar para a ria aquietada nestas primeiras horas do dia. E o que vê deslumbrou-o. A magia dos azuis que se postavam e prolongavam à sua frente, vindos da natureza preguiçosa, larga e extensa, prologava- -se no esverdeado das terras serranas. A tela que tinha defronte deixou-o perplexo. Finalmente!: ali à sua frente estava a inspiração suprema para o poema da sua vida. Sentia-o a florir, a pedir horizontes para se concretizar. Bastar-lhe-ia reproduzir a tela que tinha defronte dos olhos: – os azuis desmaiados pela neblina húmida, coada, que os desbotavam; os tufos esfarrapados de umas nuvens matinais colados na borda, no outro lado; o «moliceiro» ronceiro, vela solta, gadanhando o fundo lagunar, enchendo-se de fitas de um castanho dourado macio; os tripulantes equilibristas, correndo lestos sobre a borda da embarcação, com a vara ombreada, ferrada ao fundo lodoso; gaivinas que mal acordadas, pigarreiam nos ares à procura de um ou outro peixito que distraído, tinha vindo espreitar à superfície sem medir saber o perigo que tal atrevimento lhe custaria.
Carlos, assim o esperava, chegaria amanhã. Ega cerrou os vitrais e cantarolando Verdi, Chi e mai, chi e qui in sua vece?, seguiu a enfarpelar-se, aperaltando-se a rigor no seu abotoado paletó de verão, encimado por palhinha parisien. Ajeitou o cabelo alourado e cofiou a bigodaça majestática, espetando-lhe as pontas, revirando-as para cima. E de imediato desceu à sala onde eram servidos os breakfast para se recompor da ressaca da noite da véspera. Que em casa dos Mourões fora copiosamente regada de um excelente douro sobejamente frutado, vindo lá das suas quintas do Douro. Uma verdadeira iguaria para regalo do beiço. Lastrado por petit couchon rôti, exórdio à contenção possível, necessária para saber parar a tempo de uma «empaturradela» letal. E para sobremesa fora servido um arroz doce a nadar nuns dourados ovos, manjar conventual elaborado pacientemente entre «pai nossos e avé marias», que, acompanhado por um vintage alourado de estalar na boca, para assim melhor penetrar e reter no palato., fazendo cantar hossanas às alturas. O cardápio era de um português vernáculo. Nele não havia francesismos para identificar as iguarias. Ega não resistiu, contudo, a introduzir-lhe a bastardia franciù.
Ega pretendia ocupar parte da tarde a fazer visita de cumprimentos, «à gente fina» com o fim de anunciar a chegada de Carlos, fazendo a cada uma, uma introdução-apologia do seu amigo que, estava certo, provocaria só por si mesma, um ah!!!!!!.
Já à noite, ao serão, numa súcia de amigos, senhoras e cavalheiros presentes pareciam verdadeiramente interessados, ávidos, em conhecer esse exemplar flamejante, distinto da high society lisbonense. No dizer de Ega garantidamente muito chic. Homem prático, compreensivo, bom e inteligente, para quem a instrução de uma criança não era só recitar Tityre, tu patulae recubans, mas levá-la a saber factos, coisas úteis, coisas práticas. Carlos – explicava Ega com ênfase –recebera instrução apurada e aprimorada. Tirara em Coimbra o seu curso de medicina. Que só não exercera em absoluta dedicação, por uma não necessidade de ganho material. Já que eram bastantes os largos cabedais de seu avô. Após o desaparecimento de seu filho, Pedro Maia (pai de Carlos), tudo pusera ao dispor do neto.
As expressivas, pródigas e entusiasmadas referências feitas a Carlos, no redor daquele novo e interessante círculo de amizade, foram suficientemente capazes de levantar a curiosidade, e o expresso desejo de saber quão demorada seria (ainda!) a sua chegada.
– À saúde do «amigo» Carlos da Maia, o gentleman lisboeta que importa conhecer – dissera o sempre bem-disposto «Manelinho» da Graça – erguendo o seu copo onde espumava a frescura de um champanhe bairradino.
– Hip!... hip!... urrah!... responderam os presentes, bombar- deando o pobre João da Ega com as perguntas: saber como, quando, e a que horas, chegaria o «amigo» Carlos, de quem pareciam já íntimos.
Ia ser de arromba a estadia na Costa-Nova destes dois espécimes lisboetas (....)
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