sábado, agosto 29, 2020



OS MAIAS NA COSTA NOVA (cont)


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Um toque de búzio prolongado ecoou. Era o aviso para as mais atrasadas. Que deveriam estugar o passo, se queriam apanhar a barca. Rapidamente carregados os canastros vazios, numa algazarra confusa e nem sempre própria para os ouvidos, o arrais larga. Vela içada, cheia no vento, rumando para a outra banda.
Acomodaram-se os passantes entre aquele mulherio, que com fortes razões do cansaço de um dia de trotear pelas ruelas da vila, a vender o peixe. Mesmo assim, naquela hora descontraída, mostram viço no maneio de gestos e corpos. E cara sorridente. O Zé da «Gaita», homem de barbas ruças, artista feirante da sanfona que nas suas mãos parecia que até falava, logo foi desafiado pela Rosa «Galante»:
– Ah homem «bô», dê-me lá uma gaitada.
E logo o Arrais Labareda, malandro, jocoso, irónico, atira:
– Ah raios, andas sempre a pedir gaitadas. Não t’a cansas demónio? Depois começas aí aos saltos, encabritas-te, e ainda me partes um paneiro.
Era tarde para o aviso. Ao som da sanfona, logo uma molhada daquelas mulheres cuja vida era feita de suado e frenético trabalho, mas por natureza mulheres alegres e louçãs, com o pé no chinelo a pedir travessura, saltaram para o centro da embarcação, sacudindo-se e rodopiando, para lá e para cá, ao ritmo de um vira virado. Ega parecia subitamente interessado naqueles corpos bamboleantes, cofiando a loira bigodaça e sorrindo com prazer. Carlos parecia profundamente surpreendido com o ritmo do mexido e rodopiante do bailado, bem marcado pela sincronia do sapateado. Finda a primeira roda, logo o Ti Labareda intrinca com a Rosa, puxando-lhe pela língua:
– Ah rapariga, vais chegar a casa toda derreada. Coitado do Toino.
– Que é lá isso, Labareda: pois assoa-te que estás bem enganado... olha que o mê Toino, hoje, bem tem de pôr o reçoero de molho... Atrapalhado vai ele haver-se...
E para limpar o suor, vai à bolsa e retira um «trapo» branco para fazer de lenço. Foi uma risada geral, pois o pano a que a Ti Rosa limpava a cara, era tão só, umas «cuecas» brancas, femininas.
– Ó cachopa: foi engano ou é p’rá arejo? – atira o Labareda sentado no «cagarete», rindo a bom rir.
– Mas atão, diz a Eugénia «Pardaleira», o teu Toino não ficou lá por Lisboa, na safra de verão?
– Não filha; começou com saudades cá da Rosa, pois aquelas fufas lá de Lisboa não prestam para aviar um home daqueles. Elas bem se apegam, mareiam à volta dos nossos, mas não prestam pró lanço. É tudo aguadilha.
– Pois é; pior só os lá de Lisboa. Aquilo, lá (!), está tudo podre. Bem falta faz o Marquês, que havia de vir cá baixo outra vez, e embarcar aqueles simpras. Mandá-los trabalhar p’ró Brasil, diz a Génia.

Ega parecia ter perdido o sorriso; Carlos exibia um olhar de espanto, revelando um certo interesse na conversa, doidinho por saber o que pensaria o seu amigo Ega, desta pobre gentiaga. Manteria a sua proverbial antipatia, e até desprezo?
– Quem fala assim não é gaga, atalha a Rosa. Se viesse outro terramoto limpava a podridão que por lá vai. Aquilo fede pior que pilado de escasso. Eu andei lá a vender peixe pelas ruelas do Bairro-Alto, e nem podia anunciar o peixe fresco, pois as pindéricas e os penduralhos, só se alevantavam lá para o meio-dia, a bufarem álcool destilado na noite. Se lhe achegam um fosfro, ai vai o peralvilho. E depois aquelas fúfias botam perfume para tirarem o cheiro da devassa. Mudam de home como eu mudo de camiseta. As ruas parecem todos os dias em festa de S. Pedro: a cornadura dos «Viscondes» cobre a rua de um lado ao outro. Porta sim para lá, e porta não para cá. Arcos retorcidos, maiores que a cornadura do boi marrão do abegoeiro Alcibíades, da Companha dos Luíses.
– Oh! filha mas não se vêem ; e, se se virem, eles não se importam. E se, se importarem, serram-nos..., acrescenta a Génia.



E não só; fazem figuras de ricos, falam grosso e emproados, mas a gente entrega o peixe, e lá mandam para o livro. E o pior é que mal a gente se precata, levam um fumo que nunca mais se lhe põem os olhos em cima. Calhamaços de um raio, ajunta a Génia. Houve um simpras bem abotoado que começou a charir-me as saias, a prometer cama e mesa, e eu sem lhe dar cúnfia. Vai daí o pato bravo de bigode – aqui como este nosso amigo (apontando o Ega) – adiantou-se mais do q’o devia, c’a tive de lhe gritar ao ouvido: p’rá cama vai uma mulher séria com um homem bem aviado; e vossemecê se dá mais uma remada, capo-o com a minha navalhinha de amanhar as enguias, explica a Génia, puxando da naifinha bem afiada...
O que valeu foi que a sanfona deu de gaitar, e logo a conversa se arrumou ali. O Manel Graça, morria de riso por dentro, ao ver os amigalhaços tão severamente colocados na praça pública, ficando a saber o que na província se pensava da vida perdulária e malandra, vivida na capital do reino. Políticos corruptos,comprados a pataco, e toda uma teia de sustentados pelas famílias aboletadas provincianas, que mandavam as mesadas aos filhos e netos, para estrunfar nos salões e botequins na boa-vai-ela.
Chegados à Costa-Nova, logo foi indicado a Carlos o quarto contíguo ao de Ega, também este debruçado sobre a Ria. Marcado o jantar para as nove e meia, houve tempo suficiente para os dois amigos trocarem impressões.
– Então caro Ega (?), com esta tua descoberta, o que te vai na alma, sempre insatisfeita, sempre a pensares que a vida é uma degeneração continuada. Meu amigo: hoje não te pressinto afinal tão pessimista. Algo me parece mudado em ti... – atira Carlos.
– Pois olha que sim. É verdade. Tenho descoberto coisas interessantes com estas pessoas. E começo a ter sérias dúvidas do sentido exacto da vida que levamos lá por Lisboa. Estes pobres são gente. Gente que leva uma vida de sofrimento, mas digna e valente. E não olham para trás, se necessário for, a arriscar a vida por um simples conhecido. Tudo neles é verdadeiro: o sofrimento. Mas e também a repentina alegria de viver a vida no pouco que esta lhes oferece. Esta gente sonha. E só com isso já é feliz. Aqui dar os bons dias ao desconhecido, tem mesmo um sentido verdadeiro: parecem empenhados que tal aconteça...
– Oh! Ega, je suis enchanté mon ami... estou cheio de curiosidade. Olha (!), depois do episódio da Eduarda, de que ainda não estou totalmente são, tudo quanto tenho feito, ou tudo quanto tenho sido, parece-me falho de sentido. E a vida que temos levado soa-me a uma peça de teatro pouco realista. A vida é como uma garrafa de bom cognac: não se pode beber sem que acabe e fique vazia. Bem... vamos lá jantar, e ouvir os nossos anfitriões. Perceber que género de pessoas alberga esta nova classe burguesa, activa, empreendedora, de quem se espera mudanças radicais.


(.......) 

Senos da Fonseca



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