quarta-feira, agosto 22, 2007



NO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE MIGUEL TORGA


No Centenário de Torga ,eu, grande e fiel leitor da sua densa produção literária ,poderia, aqui, atamancar algumas palavras sobre este espírito granítico, que antes de ser poeta/prosador, era já um português do mais puro cerne, e que, depois ao sê-lo, manteve intacta a capacidade de o querer ser de todas as maneiras e de todas as formas ,que a escrita lhe permitiu .E nela, pelo caudal impetuoso que brotou da sua pena , ser só isso :– um português preocupado com o seu tempo .

Mas seriam pobres ,descoloridos e insonsos, todos os arremedos que poderia, esforçadamente, ataviar .

Ora se sobre Torga ,tive um amigo –Frederico de Moura -que o conheceu como poucos, desde o tempo em que juntos coçaram as cadeiras da Faculdade de Medicina,em Coimbra ,para se tornarem nos distintos médicos ,que ambos foram .E que sobre Torga escreveu inúmeras vezes –mais do que outro qualquer, creio… - alguns dos mais belos textos de interpretação ,não apenas da beleza e da prodigalidade de humanismo que percorriam a obra do autor ,como a própria essência das motivações -o húmus -,que serviu de alimento à sudação provocada por um trabalho desalmado, inquieto ,viril, apaixonado pela compreensão –mas e também pela exigência – para com os portugueses do« seu tempo», ” na sua humildade sem lhes tapar as suas grandezas”.

Ao transcrever parte de uma das intervenções de Frederico de Moura ,na Homenagem a Miguel Torga ,em 7 de Dezembro de 1958 ,julgo carrear ,de uma só penada ,dois notáveis da cultura portuguesa para o meu despretensioso - mas atento - Blog .
Que os dois mestres da cultura me perdoem, e compreendam, a intenção.

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HOMENAGEM A MIGUEL TORGA


(Discurso de Frederico de Moura na data de colocação da lápide que assinala a casa onde viveu o poeta)

(…)


Quisemos trazer de Trás-os-Montes o gra­nito impoluto para nele inscrever o seu nome. Só para além do Marão encontrámos a pedra que lhe merecesse o nome literário que adoptou. E fizémo-Io para aproveitar um simbolismo que, cremos bem, há-de ser grato ao seu espírito.
Para lá dessa fronteira muralhada está o «Reino Maravilhoso» do Poeta; para lá do Marão está Agarez, estão as fragas desmedidas onde a sua obra abriu caboucos; está o chão saibroso donde a sua raiz mais funda tira a seiva; está a sombra do Negrilho - essa persona­gem vegetal que vive na sua prosa. Para lá do Marão está uma sepultura, aberta talvez na pedra, onde repousam serenamente os cava­dores que foram seus Pais. E sabe-se da fideli­dade de Torga ao chão e ao sangue da sua ori­gem - sangue e chão que nunca traiu, nem é capaz de trair.
Da terra desse «Reino Maravilhoso» tem a sua mão tirado a argila para modelar um mundo de gente e de bichos, de árvores e de coisas inanimadas, que através da sua obra têm destilado quer um sangue rutilante e vivo, quer uma seiva espessa resinosa, quer uma linfa cristalina e pura onde o cheiro da leiva vive rescendente.
Do «Reino Maravilhoso» são os cavadores e as bruxas, os negrilhos e as urgueiras, as ser­ras espinhosas e os penedos siderados no ermo; de lá é também o Vicente - esse corvo rebelde que se liberta da Arca e do píncaro duma mon­tanha trava uma luta silenciosa e obstinada com a cólera de Deus. E lá, medram, até, as torgas que lhe enfeitam o nome de Poeta.
E tudo isso - gente, bichos, árvores e pedras - sai da sua mão para ultrapassar as fronteiras de uma limitação em que olhos míopes de regionalismo o tinham confinado, trazendo a humanidade daqueles rústicos duros e ter­rosos ao bafo duma compreensão universal.
E este é o milagre de que só os grandes Artistas são capazes!

Caminheiro infatigável como um almocreve tem ca1correado este velho Portugal em todos os sentidos, palmilhando estradas reais e cami­nhos de cabra, atalhos confusos e congostas sombrias, quer à cata dum retábulo numa igrejinha perdida na serra, quer na pista dum utensílio onde a mão do homem tenha deixado uma impressão digital de beleza, para daí sacar um significado expressivo de conduta ou de atitude humana.
Fiel a um patriotismo telúrico - para usar o termo tão da predilecção do Artista - tem sugado desse húmus os glóbulos para as per­sonagens vivas da sua obra; e é sempre com o mesmo respeito contido e sóbrio que acaricia a pedra lavrada ou a cerâmica rústica que topa no seu caminho, fiel ao suor humano que lhe deu origem.
Insaciável pesquisador de motivações não é capaz de se deter no que a paisagem tem de epidérmico e só se satisfaz descendo-lhe à fundura. E se calha deitar a cabeça no «colo dos penedos» é menos para se deixar adormecer num regaço maternal do que para auscultar o coração da terra, ou para lhe formular, em segredo, ao ouvido, as suas perguntas ansiosas que trespassam a crosta do pitoresco para desenterrar o que é verdadeiramente significa­tivo.
Peninsular com raiz e leiva agarrada, é-o escancarado aos rumos mais largos da cultura, sem nunca deixar que ela lhe perverta aquilo que é nuclear, sem nunca consentir que ela lhe toque, mesmo ao de leve, no estrutural da sua individualidade sempre fiel às palavras que um dia deixou escritas numa página do «Diário»:

«Fincar primeiro, com amor e com força, os pés na terra esbraseada da lbéria; e uma vez ela na sensibilidade e no entendimento, olhar então com humana e natural curiosi­dade para o que se passa do outro lado do muro.»
Pois mercê desta impermeabilidade a tendên­cias e a modismos, Torga deu uma personali­dade tão original na nossa literatura que, a mim, não há maneira de me lembrar ninguém, de me sugerir, sequer, o vislumbre duma influência.

Não cumpriria totalmente a minha missão se não deixasse aqui um apontamento, embora fugaz, sobre aquilo que no Poeta há de digni­dade e de seriedade na construção da sua obra. Não há em toda ela uma transigência coni­vente com o fácil e com o circunstancial, por­que tudo nela assenta na solidez dum alicerce granítico e incompressível; e nunca qualquer passo foi dado sem pisar um chão pedregoso e difícil que lhe morde os pés e lhos deixa em sangue. Cada lauda que lhe sai da pena traz
o esforço sério e suado do trabalho e, como os cavadores da sua terra, Torga tem pela sua obra o respeito que aqueles têm pelo pão que lavram e mastigam religiosamente - pão esse que eu um dia surpreendi o Poeta a semear, no seu chão de São Martinho de Anta, com um gesto tão solene e ritual, com uma atitude tão digna e compenetrada que tive a sugestão de que o vi semear na brancura do papel as palavras que haviam de amadurecer na seara dum Poema.

Coisa de pouca monta foi aquilo que fize­mos para festejar um Poeta. Mas fizemo-lo sem o receio de o confinar, sem medo de o deixar preso à restrição de uma homenagem mesquinha, porque o não é, na medida em que vem desta família que constituímos e não quer ultrapassar esse âmbito. Não há-de ser esta simples lembrança fraternal que vai tirar a vez à homenagem que o grande Artista merece de todos aqueles que amam a beleza e as ideias de solidariedade humana; de todos aqueles que sabem valorizar no homem a seriedade que não cata popularidades fáceis, o trabalho honesto que não se hipoteca a críticas suspeitas, nem se vincula a igrejinhas de elogio mútuo.
Eu por mim, exprimi-me com as raízes enter­radas na sinceridade mais descamada de arti­fícios e interpretando o melhor que me foi possível o sentir dos condiscípulos. De mais a mais, como simples moço de recados que fui do Curso, encarregado de fazer a oferenda, não se me podia exigir muito mais do que fazê-la e dar ao Torga o abraço fraterno de todos nós.

Frederico de Moura

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