segunda-feira, dezembro 30, 2013

De novo a Joana Gramata





De novo  a «Joana Gramata»


Estávamos no dealbar do séc. XIX.
Joana Rosa de Jesus, descendente do velho Gramata, um dos primeiros que tinha posto pé por aquelas beiras disposto a «lançar ferro», e ali ficar, tinha naquela noite em que o luar espargia, quente e prateado aquele «mar dunar», decidido ir ao encontro do vento. Que se tinha esquecido de espinotear como garrano selvagem, permitindo que o bafo quente saído da terra, ainda a cheirar a salsugem, penetrasse, bofes adentro, como sussurro de búzio. A noite estava calma. Vindo lá do suão a aragem leve, estival, tinha tomado conta da planície, fustigando ao de leve os caniços secos e as hastes de milho que começavam a enverdecer aquelas paragens maninhas. A planura era um mar de silêncio que só o bulício dos milheirais quebrava.

Joana deu por si espreguiçada na duna, a olhar a lua e as estrelas, sonhando com aquela terra prometida, de que se sentia parte, estremecendo de prazer ao descortinar os tufos dos milheirais que começavam a surgir na planura extensa, lodosa e saliente que o mar deixara a descoberto. E sonhou com o dia em que as lonjuras se pintarão de verde forte,  mar alqueivado de vegetação fresca e rebelde, produto da teimosia vigorosa de quem por ali se quedara, acreditando na promessa da terra tenra. Joana estava decidida a fazer parte desse mundo novo, ainda só adivinhado.Custasse o que custasse, fosse qual fosse o cansaço, ou amarga desilusão,  que essa feitura trouxesse com ela.    

De repente foi subitamente despertada pelo barulho de um tropel  de uma manada que se aproximava. O luar reflectido nos olhos  ziguezagueantes dos animais em correria aturdida, fazia parecer que sobre a duna voavam pirilampos incandescentes. Gambuzinos de corpanzis negros avantajados, sacolejando bravios no areal que espirrava do seu tropel,  logo feito  nebulosa faiscante…

Na égua negra de pêlo lustroso, o José Domingos, o «Maluco», rodopiava. Saracoteando-se em rodeio bravio. Para cá e para lá, ora apartando ora repondo no trilho, a manada, enquanto vai gritando: eh!…«Bonita»; eh! «Malhada!»…Chê!..«Desertora» …achegai-vos …ide ao caminho, raios!… 

Joana corre ao seu encontro. Tanto fora já o tempo de espera!.... Dias de sol a sol adiados na esperança de ver chegado o momento. Levantou-se estendendo  a cabaça de água fresquinha, pronta a ser oferecida para dessedentar o condutor da manada da baforada da noite. Maneia-se lépida, saia curta pelo meio da coxa morena. Na cara vai um sorriso malandro, meio envergonhado, meio picante, que sabe fazer apetecer coisas simples. Que por vezes parecem esquecidas na lufa-lufa da vida.
Joana vai mais fresca que a água que leva na cabaça,e o Domingos  tem é sede  da mocetona.Fome dos seus beijos, saudades  daqueles olhos que, doces como amêndoas, cegam. Desejo daquela pele escura, cor de canela macia temperada pela maresia. A noite parecia repentinamente iluminada por aquele fogo. Era fogo a lamber outro fogo, que água alguma era bastante para apagar. Vento forte faz estremunhar, mas aragem cálida da noite, essa(!), atiça

«O Maluco» ergue-a do chão e coloca-a na garupa da égua que aceita o carrego de bons modos, ela também cansada da solidão. Joana aconchega-se à sua cintura e, sem palavras, dirigem-se para o palheirão onde um coxim de palha, forrado de papoilas vermelhas, não lhes vai dar tempo de ajeitar melhor recosto.

Passados os meses da conta, na palha, sob o bafo quente da «Bonita», da «Malhada», da «Desertora», e de outras tantas, aconchegado pela quentura da «Bonita», a égua negra do Domingos, nasce, na noite fria de Dezembro, o primeiro dos nove filhos que o casal dos «Malucos» fará vir ao mundo, naquele recanto da Galefanha.

Que em sua honra usará para distinção, o nome da terra da «Maluca».

 ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Nota importante: Sempre fui uma mau arquivista. Felizmente tive sempre grandes ajudas nesse ponto, e por isso, muitas coisas se salvaram. Ora sucede que há tempos, amiga de longa data trouxe-me uma sacola de papelada, onde encontrei –feitos há 40 anos(! )– textos, poemas,documentos e outros.

De ente eles espantou-me este texto que reproduzo acima. Não vinha acabado, não tinha assinatura etc. Mas a letra era minha. Apontamentos tirados? Admito. Mas na textura encontro muito (ou tudo) da minha maneira de escrevinhar. Não sei, mas gosto dele. E divulgo-o com as reservas que aqui deixo. Junto ao muito que tenho escrito sobre a Joana Gramata.
SF -30 Dezembro de 2013 

2 comentários:

Unknown disse...

Belo texto sobre as nossas origens, parabéns!
Ainda me considero uma humilde descendente da Joana Gramata! O meu pai, o conhecido e saudoso "Zé da Rosa", viveu muitos anos na rua desse nome. Gratas recordações!

Unknown disse...

Belo texto sobre as nossas origens, parabéns!
Ainda me considero uma humilde descendente da Joana Gramata! O meu pai, o conhecido e saudoso "Zé da Rosa", viveu muitos anos na rua, com esse topónimo, na Gafanha da Encarnação!Gratas recordações!

A « magana » que espere....  Há dias que  ainda me conseguem trazer interesse renovado, em por cá estar  por mais uns tempos. Ao abrir logo ...