De novo a «Joana Gramata»
Estávamos
no dealbar do séc. XIX.
Joana
Rosa de Jesus, descendente do velho Gramata, um dos primeiros que tinha posto pé por aquelas beiras disposto a «lançar
ferro», e ali ficar, tinha naquela noite em que o luar espargia, quente e prateado
aquele «mar dunar», decidido ir ao encontro do vento. Que se tinha esquecido de
espinotear como garrano selvagem, permitindo que o bafo quente saído da terra,
ainda a cheirar a salsugem, penetrasse, bofes adentro, como sussurro de búzio.
A noite estava calma. Vindo lá do suão a aragem leve, estival, tinha tomado
conta da planície, fustigando ao de leve os caniços secos e as hastes de milho
que começavam a enverdecer aquelas paragens maninhas. A planura era um mar de
silêncio que só o bulício dos milheirais quebrava.
Joana
deu por si espreguiçada na duna, a olhar a lua e as estrelas, sonhando com
aquela terra prometida, de que se sentia parte, estremecendo de prazer ao
descortinar os tufos dos milheirais que começavam a surgir na planura extensa,
lodosa e saliente que o mar deixara a descoberto. E sonhou com o dia em que as lonjuras
se pintarão de verde forte, mar alqueivado de vegetação fresca
e rebelde, produto da teimosia vigorosa de quem por ali se quedara, acreditando
na promessa da terra tenra. Joana estava decidida a fazer
parte desse mundo novo, ainda só adivinhado.Custasse o que custasse, fosse qual fosse o
cansaço, ou amarga desilusão, que essa
feitura trouxesse com ela.
De repente foi subitamente despertada pelo barulho de um tropel de uma manada que se aproximava. O luar
reflectido nos olhos ziguezagueantes dos
animais em correria aturdida, fazia parecer que sobre a duna voavam pirilampos
incandescentes. Gambuzinos de corpanzis negros avantajados, sacolejando bravios
no areal que espirrava do seu tropel, logo feito nebulosa faiscante…
Na
égua negra de pêlo lustroso, o José Domingos, o «Maluco», rodopiava. Saracoteando-se
em rodeio bravio. Para cá e para lá, ora apartando ora repondo no trilho, a
manada, enquanto vai gritando: eh!…«Bonita»; eh! «Malhada!»…Chê!..«Desertora»
…achegai-vos …ide ao caminho, raios!…
Joana
corre ao seu encontro. Tanto fora já o tempo de espera!.... Dias de sol a sol adiados
na esperança de ver chegado o momento. Levantou-se estendendo a cabaça de água fresquinha, pronta a ser oferecida para
dessedentar o condutor da manada da baforada da noite. Maneia-se lépida, saia curta pelo
meio da coxa morena. Na cara vai um sorriso malandro, meio envergonhado, meio
picante, que sabe fazer apetecer coisas simples. Que por vezes parecem
esquecidas na lufa-lufa da vida.
Joana vai mais fresca que a água que leva na cabaça,e o Domingos tem é sede da mocetona.Fome dos seus beijos, saudades daqueles olhos que, doces como amêndoas, cegam. Desejo daquela pele escura, cor de canela macia temperada pela maresia. A noite parecia repentinamente iluminada por aquele fogo. Era fogo a lamber outro fogo, que água alguma era bastante para apagar. Vento forte faz estremunhar, mas aragem cálida da noite, essa(!), atiça
«O
Maluco» ergue-a do chão e coloca-a na garupa da égua que aceita o carrego de
bons modos, ela também cansada da solidão. Joana aconchega-se à sua cintura e,
sem palavras, dirigem-se para o palheirão onde um coxim de palha, forrado de
papoilas vermelhas, não lhes vai dar tempo de ajeitar melhor recosto.
Passados
os meses da conta, na palha, sob o bafo quente da «Bonita», da «Malhada», da «Desertora»,
e de outras tantas, aconchegado pela quentura da «Bonita», a égua negra do
Domingos, nasce, na noite fria de Dezembro, o primeiro dos nove filhos que o casal
dos «Malucos» fará vir ao mundo, naquele recanto da Galefanha.
Que
em sua honra usará para distinção, o nome da terra da «Maluca».
De ente eles espantou-me este texto
que reproduzo acima. Não vinha acabado, não tinha assinatura etc. Mas a letra
era minha. Apontamentos tirados? Admito. Mas na textura encontro muito (ou
tudo) da minha maneira de escrevinhar. Não sei, mas gosto dele. E divulgo-o com
as reservas que aqui deixo. Junto ao muito que tenho escrito sobre a Joana
Gramata.
SF -30 Dezembro de 2013
2 comentários:
Belo texto sobre as nossas origens, parabéns!
Ainda me considero uma humilde descendente da Joana Gramata! O meu pai, o conhecido e saudoso "Zé da Rosa", viveu muitos anos na rua desse nome. Gratas recordações!
Belo texto sobre as nossas origens, parabéns!
Ainda me considero uma humilde descendente da Joana Gramata! O meu pai, o conhecido e saudoso "Zé da Rosa", viveu muitos anos na rua, com esse topónimo, na Gafanha da Encarnação!Gratas recordações!
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