(Nota imp. Amigo teve a gentileza de me enviar este documento de Henrique Moutela ,que faz um resumo da história dos Estaleiros de S.Jacinto, que tão bem conheci, onde estagiei com C.Roeder e H.Moutela. Julgo curioso divulgar esta fonte . As fotos ~foram cedidas por AML.)
OS ESTALEIROS DE SÃO JACINTO
50 ANOS DE HISTÓRIA
Por
Henrique Moutela
Janeiro de 1990
INTRODUÇÃO
Sendo dos chamados Fundadores dos
Estaleiros São Jacinto, o único ainda vivo, com quarenta e quatro anos de
actividade diária, sei que se não for eu a historiar os muitos bons e maus
momentos vividos nestes anos, dificilmente haverá quem o faça.
Vamos pois dizer a verdade.
AS ORIGENS
A grande tradição piscatória de Aveiro,
esteve sempre ligada a três tipos de pesca:
Pesca lagunar feita por bateiras
utilizando um variadíssimo número de artes de pesca;
A pesca de xávega, feita no litoral e que
chegou a alimentar grande número de fábricas de conservas;
A pesca longínqua, do bacalhau, feita em
pequenos dóris, em mar aberto, a partir do navio mãe, que era como se sabe, um
lugre construído em madeira e apenas com propulsão à vela.
Data de 1501 a saída dos primeiros
veleiros de Aveiro para a pesca do bacalhau, nos bancos da Terra Nova.
Por volta dos anos trinta do nosso século
esta pesca atravessou uma das maiores crises da sua vida, levando os Armadores
a suportarem dificuldades de toda a ordem, em especial no domínio financeiro.
Em 1931, quatro bravos capitães, cujos
nomes não é demais recordar, Labrincha, João da Cruz, João Cajeira e Bilelo,
resolveram ir em comboio, se é que o termo está correcto, nesses veleiros
desprovidos de quaisquer meios de propulsão além das velas e sem quaisquer
meios de comunicação, até aos mares gelados na Gronelândia, pescar bacalhau.
Foi um feito heróico e, graças ao
carregamento que trouxeram, abriram novas perspectivas a esse tipo de economia.
Porém, negaram-se a lá voltar sem motor auxiliar de propulsão, o que é
absolutamente lógico.
É nessa altura que Carlos Roeder na qualidade
de representante em Portugal dos motores diesel “Guldner”, aparece em
Aveiro a vender motores para os veleiros da Empresa de Pesca de Aveiro. Fá-lo a
crédito e, mais tarde é convidado a entrar como sócio dessa empresa com o valor
da venda dos motores, o que aceita. É assim que Carlos Roeder, cidadão do Sul
do País e principal fundador e accionista dos Estaleiros São Jacinto, aparece
em Aveiro.
Convence os sócios da Empresa de Pesca de
Aveiro e abandonarem a pesca à linha em dóris, por a considerar desumana e
ultrapassada e a iniciar a pesca por arrasto. Assim, nasce em 1935 o primeiro
arrastão português, o "Santa Joana", para a pesca longínqua, mandado
construir na Dinamarca por Carlos Roeder.
Com o seu elevado espírito de progresso,
Carlos Roeder adquire um segundo arrastão, o "Santa Princesa", e toma
a decisão de construir nos terrenos da E.P.A. um estaleiro para construção
naval em aço, no porto de Aveiro. Mas não entenderam assim os restantes sócios
da E.P.A..
Carlos Roeder que era de ideias fixas,
resolve então, com um grupo de amigos e colaboradores, iniciar no ano de 1940,
na povoação de São Jacinto, a construção de um estaleiro com este nome.
SITUAÇÃO
O Estaleiro situado no braço da Ria que
forma o canal de São Jacinto para Ovar, com acesso directo à barra de Aveiro,
tem a área aproximada de setenta mil metros quadrados, dos quais vinte mil de
área coberta.
O local onde, anteriormente havia uma
fábrica de guano que trabalhava com excesso de peixe capturado pelas artes da
xávega, estava hipotecado ao Crédito Predial e foi adquirido pela importância
de cinquenta mil escudos.
De notar como curiosidade , que a
embarcação "Mina" ainda existe, e que foi o primeiro elo de ligação
motorizado entre as duas margens da Ria, custou tanto como o terreno e alguns
dos edifícios existentes.
Sem pretender ser enfadonho, haverá que
realçar que toda a contribuição dada por estes Estaleiros à construção naval
nacional, está intimamente ligada ao espírito evoluído e altamente progressista
do seu fundador.
Carlos Roeder foi realmente um homem de
invulgares qualidades de trabalho e capacidade técnica, evoluiu. Depois de ter
concluído os estudos da escola politécnica de Lisboa, foi para a Alemanha
cursar engenharia. Como é sabido, a Alemanha, saída de uma guerra e a
preparar-se para a segunda, teve uma evolução tecnológica invulgar. De entre um
número sem fim de soluções tecnológicas, poderá dizer-se que aquilo que mais
concretamente influenciou a construção naval foi o aparecimento e
desenvolvimento do motor a diesel e do emprego da soldadura eléctrica.
Carlos Roeder agarra nessa nova tecnologia
e é ele que lança, com anos de avanço a soldadura eléctrica em Portugal, logo
no primeiro navio construído em São Jacinto. Diga-se, com grande avanço, em
relação a grandes países construtores como, por exemplo, a Inglaterra.
Os Estaleiros foram, como se disse,
fundados em 1940, isto é em plena guerra mundial. A falta de materiais fez com
que até 1945 se dedicassem exclusivamente á construção metálica e de máquinas,
sendo o primeiro grande trabalho de engenharia, o ainda existente e sempre belo
hangar da Base de S. Jacinto, na altura pertença da aviação naval. Trata-se de
um hangar com 60 metros de vão e que teria de suportar nas asnas, dois
hidroaviões.
Ainda hoje é uma obra de engenharia digna
de ser apreciada.
Como se disse, os Estaleiros de São
Jacinto foram fundados em 1940, mas devido às vicissitudes da guerra, só em
1945 iniciaram a sua actividade em construção naval.
O primeiro trabalho de reparação e
transformação naval feito nos Estaleiros de São Jacinto foi no navio de arrasto
do Cabo Branco, "São Gonçalo", propriedade da firma Bagão Nunes e
Machado. Compreendeu a substituição da caldeira e máquina a vapor por um motor
a diesel, transformação das bancas de carvão em tanques de combustível, novo
arranjo geral de alojamentos e montagem de um guincho de arrasto accionado por
um motor diesel.
Em 1946, é convidado o signatário deste
depoimento a integrar os quadros deste estaleiro, com a incumbência de desenhar
e dirigir a construção do maior navio até então construído em Aveiro.
Tratava-se do "Dione", navio para 1100 toneladas de carga,
propulsionado por um motor diesel "Mirless" de 800 BHP sobrealimentado.
Nota-se que foi o segundo ou terceiro motor diesel marítimo sobrealimentado
montado em Portugal.
Em abono da verdade, em 1951, a palavra
"jumboising" ainda não tinha entrado na construção naval mundial:
cortar um navio ao meio e aumentá-lo, melhorando-lhe a capacidade de carga, não
era normal.
Passou a sê-lo sim, a partir dos anos 60.
Acontece que, em 1951, havia em Aveiro o
navio "Rui Alberto", propriedade do armador João dos Santos, da
Gafanha. O navio tinha pouca capacidade de carga.
Estaleiros de São Jacinto tomou o
compromisso de fazer cálculos, encalhou o navio na carreira, cortou a meio,
aumentou-o 6 metros e, se não fez o primeiro "jumboising" do mundo,
fez de certo, com 10 anos de avanço, o primeiro "jumboising" português.
Outras construções se seguiram sem
grande significado tecnológico para a época, até à construção nº 23. Os tempos
eram maus e a influência política, os ditos e os mexericos, que se viviam na
época, fizeram com que os Estaleiros de São Jacinto fossem considerados sem
qualquer interesse nacional.
Ao contrário dos administradores de outros
estaleiros, Carlos Roeder não era político e, pelo contrário, devido à sua
grande capacidade técnica e espírito aberto e por não recear alcançar factos
comprometedores, era considerado persona non grata no pequeno mundo da
construção naval e, em especial, nas pescas.
Os estaleiros da província, nasceram quase
exclusivamente para contribuírem para a concretização da construção e, mais
tarde, da renovação das várias frotas de pescas. O apoio dado às pescas pela
política do Estado Novo, nas pessoas do Ministro da Marinha, Américo Thomaz e
delegado do Governo para as Pescas, Henrique Tenreiro, justificam plenamente a
constituição desses Estaleiros. A confirmá-lo está o facto de, durante trinta
anos, terem mantido uma actividade plena.
Por volta de 1955, Américo Thomaz, na
qualidade de Ministro da Marinha, anuncia em discurso público a renovação de
todas as frotas de pesca, desde a costeira à longínqua, passando pela do alto e
África do Sul. Nesse discurso, não só se indica o número de navios a construir,
como também os Estaleiros contemplados, nos quais não havia lugar para os de
São Jacinto. Nesse mesmo dia, um telegrama de protesto é enviado para Salazar e
acontecendo ter esse discurso coincidido com a tomada de posse como Governador
Civil de Aveiro, do grande aveirense Dr. Francisco do Vale Guimarães, este
actuou de forma e que Aveiro tivesse, na construção naval, os mesmos direitos
de Viana do Castelo e da Figueira da Foz.
Esclarecidas todas as dúvidas, é nessa
altura que se dá a grande transformação na actividade destes Estaleiros.
UMA NOVA ERA
Com a entrega ao estaleiro da construção
do navio de pesca à linha para a pesca longínqua, "João Ferreira"
destinado à Industria Aveirense de Pesca, indica-se uma nova época de
actividade. São construídas carreiras de construção de maiores dimensões. As
oficinas crescem a par com os aparelhos de elevação e o número de trabalhadores
vai aumentando progressivamente passando de 150 para mais de 600, em 1975.
Em 1963, com a construção dos modernos
arrastões de arrasto pela popa para pesca longínqua, aumenta-se a caldeira, a
oficina de pré-fabricação e inicia-se a construção pré-fabricada de blocos de
40 toneladas. Abdica-se totalmente da pouquíssima cravação usada até essa
altura, passando a usar-se unicamente a soldadura, tendo-se lançado pela
primeira vez em Portugal, no navio "João Ferreira" a iluminação e
força motriz com corrente alterna, em substituição da corrente contínua usada
até ai.
Como contributo tecnológico registe-se em
especial o seguinte:
Nos Navios de Pesca Longínqua à Linha
Com adjudicação do navio "João
Ferreira" em 1955 projectaram os serviços técnicos dos Estaleiros de São
Jacinto, um navio de características e arranjo geral idêntico a todos os outros
construídos ou em construção, até essa altura. Apresentado o projecto a Carlos
Roeder, ele, com o respeito que o trabalho alheio lhe merecia, louvou os
executantes, mas, passados momentos, lamentou que o navio fosse igual aos
outros, sem qualquer novidade, e irracional. Perguntou se alguma vez alguém
tinha pensado por que razão os navios tinham aquele tipo de arranjo.
Na sua óptica, os navios a motor de pesca
à linha tinham derivado do lugre que sucessivamente, por imposição da pesca se
foi alterando, com a instalação de um motor auxiliar de propulsão, alojamento à
popa para mais alguns tripulantes, como motoristas e piloto, necessidade de
embarque do isco, improvisando-se um frigorífico sobre o convés a meia nau,
mantendo-se o restante na mesma. Havia pois que refazer tudo de novo.
Porquê os pescadores à proa, em rancho
comum, que servia de dormitório e refeitório, aquecido com o calor da cozinha
integrada no respectivo rancho, havendo que transportar a comida da proa para
popa para os oficiais ?
Porquê a instalação de extracção de óleo
dos fígados a ré, em local de privilégio para alojamentos e, em especial,
porquê o frigorifico, colocado sobre o convés a meia nau, em lugar de
privilégio para primeira classe?
Destes reparos nasce a nova geração de
quatro navios de pesca à linha, "João Ferreira", o "Rio
Alfusqueiro", o "Vimieiro" e o semelhante "Neptuno",
que fizeram as delicias de quem neles embarcou. No castelo, à proa, em vez do
rancho e cozinha foi colocada a zona industrial, formada por paióis de
apetrechos de pesca, instalação de extracção de óleo dos fígados e instalação
frigorífica para o porão do isco e câmaras de mantimentos. O porão frigorífico
foi colocado sobre o convés à proa, por baixo das máquinas frigoríficas e por
ante a vante foram colocados os tanques para o óleo dos fígados. A parte
central do navio ficou reservada para a faina da pesca. Sobre o convés, montou-se
pela primeira vez em Portugal a máquina de lavar peixe e cintas transportadoras
para o transporte do peixe dos quetes para a máquina de lavar e desta para o
porão. À ré colocaram-se todos os alojamentos, para oficiais e pescadores,
divididos por um arranjo de escadas e corredores com comunicação de emergência.
Pela primeira vez os pescadores são instalados em camaratas decentemente
decoradas, com ventilação forçada e aquecimento central. Uma ampla sala para o
serviço de refeições e momentos de lazer, é servida por elevador directamente
da cozinha. Pela primeira vez é instalada água quente nas instalações
sanitárias dos pescadores e nos restantes camarotes do navio.
Os primeiros destes três navios puderam
ser facilmente transformados em arrastões clássicos, como se para tal tivessem
nascido, graças à distribuição inicial adoptada.
Na Pesca do Arrasto
Penso ter sido neste sistema de pesca que
mais se tem feito sentir o espírito evoluído destes Estaleiros e ser do maior
interesse contar uma breve história que só por si traduz a raiz desse espírito.
Quando, em 1946, fui assinar o compromisso
da minha vinda para Aveiro, Carlos Roeder pediu-me um favor. Disse-me que, como
consultor técnico da E.P.A. tinha em seu poder os desenhos de construção de
três arrastões que essa empresa acabara de contratar. O "São
Gonçalinho" em Viana do Castelo (salvo erro, a primeira construção desse
estaleiro), o "Santo André", na Holanda, e o "Santa
Mafalda", em Itália.
Manifestei-lhe o meu espanto por uma
encomenda tão grande para a época, mas logo me disse para o não felicitar pois
os navios ainda não tinham sido iniciados e já estavam ultrapassados. Com mais
espanto meu, disse-me que deveriam ser de arrasto pela popa, já que um arrastão
nada mais era do que um rebocador da rede.
Estas palavras foram proferidas quase dez
anos antes do aparecimento dos primeiros arrastões alemães de arrasto pela popa
e catorze anos antes da construção do primeiro arrastão português de arrasto
pela popa, o "Atrevido", construído por estes Estaleiros para as
Pescarias Beira Litoral, igualmente fundados a partir deste estaleiro.
Só em 1964, isto é, dezanove anos após
aquela afirmação, é entregue o primeiro arrastão português de arrasto pela popa
para a pesca longínqua: o "Santa Isabel" para a E.P.A., construído em
São Jacinto.
Antes da construção do
"Atrevido" em São Jacinto, iniciou-se a renovação da frota de pesca
de Cabo Branco. A Administração da Companhia Portuguesa de Pesca manteve as
melhores ligações com estes Estaleiros, no sentido do arranque do arrasto pela
popa. Foi feito o ante-projecto e tudo indicava a sua concretização. Porém à
última hora os Armadores confessaram não terem coragem para arriscar nesse
projecto. Mais tarde, Henrique Tenreiro chama Carlos Roeder e pede-lhe para São
Jacinto projectar um arrastão de arrasto pela popa, para a pesca do Cabo
Branco.
Carlos Roeder sugere que, em vez de se
arriscar verba nessa construção, autorizasse a construção do
"Atrevido" para a pesca costeira. A autorização foi dada e assim nasceu
o primeiro arrastão português de arrasto pela popa.
Colaboraram estes Estaleiros com o
Engenheiro Luís Pinto Vilela num novo projecto de navio de arrasto pela popa
para a pesca costeira. Coube-me a mim, por incumbência de um grupo de
armadores, escolher o protótipo, para uma série de seis navios iguais.
Escolhi o projecto "Vilela", com
o qual havíamos colaborado, e assim nasceu uma frota de cerca de 100 novos
navios, dos quais São Jacinto fez mais de 30 unidades.
Em colaboração com o Engenheiro Conrad
Birckoff, projectaram-se e construíram-se os arrastões de arrasto pela popa
tipo "Santa Isabel", dos quais se construíram oito navios, todos com
alterações sucessivas de modernização, sendo os dois últimos, o "Adélia
Maria" e o "Vila do Conde" já projecto total de S. Jacinto.
De referir que também neste tipo de navios
o sistema utilizado de recolha do aparelho de pesca é ainda hoje, passados
vinte e cinco anos, mais moderno e eficiente do que o usado em modernos navios
que incompreensivelmente não evoluíram nesse processo.
De realçar que o último navio construído,
o "Vila do Conde", é o único que possui aros de pesca oscilantes, de
sistema hidráulico, com comando à distância, que permitem com a maior das
facilidades os cabos reais na rampa para pesca no gelo. Só recentemente temos
visto aplicado sistema diferente (ice gallows) em navios das frotas dos
países nórdicos.
Em 1986, somos qualificados por um
projectista da Noruega para construir novos navios para as suas frotas,
obedecendo aos mais rigorosos regulamentos do D.N.V. e do Norwegian Maritime
Directorate.
Em 1987, é entregue o primeiro navio, o
"Sea Prawn", de características fora do normal no que se refere à
relação entre as dimensões principais. Trata-se de um navio altamente
sofisticado, com o casco em chapa de 20 mm de espessura, para operar todo o
ano, acima do Círculo Polar Ártico. Todos as superfícies metálicas expostas ao
tempo, são aquecidas por cabos eléctricos, de forma a não permitir a acumulação
de gelo. Tem montado numa coberta de trabalho, com apenas dez metros por dez,
uma fábrica automática de processamento de camarão que selecciona, coze,
descasca totalmente, congela em túneis contínuos e armazena, tendo esta
instalação, custado mais de quatro milhões de coroas dinamarquesas, o
equivalente, na época, a oitenta mil contos.
Para as frotas da Noruega e Gronelândia,
foram construídos mais três navios, dois dos quais para arrasto em mares de gelo,
todo o costado praticamente construído em chapa 25 mm de espessura. Tratava-se
de um navio com três pavimentos, em que o próprio convés de recolha da rede é
protegido, estando os guinchos auxiliares colocados num pavimento à proa, sob o
molinete, o que permite com toda a segurança recolher a rede de uma só vez.
Arrastão Novos Mares
Outros Tipos de Navios
Coube ainda a estes Estaleiros,
projectarem e construírem os primeiros navios palangreiros para o palangre de
superfície, o "Paralelo" e o "Meridiano", mais
concretamente, para a pesca do espadarte. Tal só foi possível graças ao
dinamismo da firma armadora dos mesmos navios, Sociedade de Pesca Miradouro,
Lda.
Penso terem sido estes Estaleiros os
únicos que, em Portugal, construíram, com projecto "Campbell" de San
Diego, dois atuneiros oceânicos, obedecendo à mais alta tecnologia aplicada a
este tipo de navios.
Além da contribuição dada por estes
Estaleiros à construção naval no domínio das pescas, navios de outros tipos,
tais como navios tanques, navios fruteiros, dragas e rebocadores, projectados
na totalidade ou em colaboração, e construídos nestes Estaleiros, merecem ser
realçados, em especial o que se refere a dragas e rebocadores. Em colaboração
com firmas inglesas e holandesas, foram construídas seis dragas. Duas
estacionárias de sucção, duas de sucção com propulsão e duas de "grabe".
As quatro últimas, dispondo já de equipamento electrónico de controle de
profundidade de dragagem e densidade de dragados.
Nos rebocadores de 1200 CV projectados e
construídos para o ministério do Ultramar, primeiros de uma solução bimotora
com uma linha de veios de passo variável, foi incorporado por sugestão dos
Estaleiros, pela primeira vez no redutor, o sistema de comando do passo
variável.
Deverá ser realçada ainda, uma série de
rebocadores onde com apenas 2200 BHP, se conseguiram 36 toneladas de tracção ao
ponto fixo.
Esta série, projectada por S. Jacinto a
pedido da Lisnave, teria de obedecer a um baixo custo de produção e de
exploração e um elevado poder de tracção, de forma a serem utilizados na
manobra de docagem dos superpetroleiros. Com hélice de passo fixo, a baixo
número de rotações, o que obrigou a um elevado calado a ré, de forma a permitir
um hélice de grande diâmetro, tubeira leme "Kort" e máquina do
leme de grande eficiência com vários postos de comando, resultou que a referida
série se estendesse a dezoito unidades, o que atesta bem a eficiência do
projecto.
Com ligeiras alterações no que se refere a
alojamentos, foram construídos oito para a "Lisnave", seis para os
“Estaleiros do Bahrain", dois para a "Soponata" e dois para a
"Setenave". Uma série de dezoito navios atesta o contributo positivo
do projectista e construtor à economia nacional.
Penso que ao fim de cinquenta anos de
existência, dos quais praticamente só quarenta e cinco foram dedicados à
construção naval, terem-se construído e em construção duzentos e onze navios
dos mais variados tipos, alguns dos quais com grande inovação tecnológica, é
razão mais que suficiente para nos considerarmos realizados por termos
contribuído validamente para o engrandecimento do pais.
Se a tudo isto se juntar terem estes
Estaleiros sido pioneiros em:
utilização em grande escala de soldadura eléctrica
a partir de 1944;
terem projectado e construído o primeiro
arrastão português de arrasto pela popa, o "Atrevido", e terem
pugnado a nível nacional pelo lançamento deste tipo navios;
terem construído, os primeiros arrastões
de arrasto pela popa a pesca longínqua;
terem concebido e alterado profundamente o
navio de pesca longínqua a linha;
terem sido os primeiros em 1956 a utilizar
a bordo a corrente alterna trifásica em substituição da corrente contínua, data
da qual se deixaram praticamente de se construir navios com outro tipo de
corrente eléctrica;
terem sido os primeiros a fabricar a
partir de 1960, tubeiras leme "Kort", sob licença;
Penso estar justificado o orgulho, que os
técnicos e colaboradores deste Estaleiro, sentem em ter colaborado na execução
de todos estes projectos.
NOTA FINAL
A história destes 50 anos de existência
dos Estaleiros São Jacinto, não ficaria completa se não fossem realçadas as
virtudes de 5 homens que através de qualidades verdadeiramente inexcedíveis,
tornaram possível a formação e consolidação duma empresa que se tem imposto
pela sua austeridade, humildade e espírito inovador.
A homenagem que aqui se presta a essa
geração de elite, servirá certamente de incentivo a todos os seus seguidores.
Carlos Roeder
Fundador de várias empresas em Portugal
entre elas, os Estaleiros de São Jacinto.
Dotado de uma capacidade técnica invulgar,
espírito sagaz, de rara visão inovadora, incutiu na mente de todos quantos com
ele trabalharam, a necessidade do rigor, da competência exemplar, do cálculo
austero. Jamais aceitou que se aplicasse um quilograma de ferro, onde apenas se
justificava usar novecentos e cinquenta gramas.
Contudo, em mais de quarenta anos de
actividade, não consta que alguma vez tenha conhecido o insucesso técnico.
Homem de espírito simples e aberto, teve a
sorte ou sabedoria de se rodear de pessoas que lhe foram totalmente fieis de
corpo e coração.
Conseguiu fazer verdadeiras escolas de
trabalho e de virtudes ,dentro das empresas.
Deu oportunidade a que o simples aprendiz
pudesse vir a ser administrador. E de tal forma esta tradição se enraizou nos
Estaleiros de São Jacinto, que ainda hoje, aprendizes de outrora se
transformaram em engenheiros, chefes de departamento, chefes de serviço,
encarregados e como se disse atrás, administradores.
Teve poucos momentos para dedicar à sua
vida privada, já que desconhecia a existência de sábados e domingos.
Esqueceu-se de casar; e quando morreu não tinha herdeiros descendentes. Pouco
mais de uma semana antes de falecer, incumbiu os seus mais directos
colaboradores de elaborar os Estatutos de uma Fundação, à qual pudesse legar
todos os seus bens. Nasceu assim a Fundação Roeder, cuja administração,
atribuiu vitaliciamente àqueles que lhe tinham dedicado toda a sua vida e cujos
rendimentos se destinariam a todos os trabalhadores das empresas onde detinha
capital accionista de alguma importância.
Através dos tempos tem esta Fundação
contribuindo de forma decisiva para o bem-estar dos trabalhadores, quer através
de empréstimos, sem juros, para a construção de habitação própria, quer através
de bolsas de estudo, aquisição de livros e material escolar para os
trabalhadores e seus filhos, quer, ainda, através de ajudas pontuais àqueles
que pelas vicissitudes da vida, se aprestam com problemas materiais graves.
Foi agraciado com a comenda de Mérito
Industrial, em 1960.
Deixou-nos para sempre em 9 de Fevereiro
de 1965.
Jorge Pestana
Foi o primeiro e principal colaborador de
Carlos Roeder. Começaram a trabalhar juntos nos Estabelecimentos Industriais da
Metalúrgica Alentejana, em Beja, onde ocupava o lugar de encarregado.
Percorreu o pais a pé, orientando a
construção de diversas estruturas civis. Procedeu à montagem de praticamente
todos os postes metálicos para o transporte de energia eléctrica, existentes em
Portugal.
Pessoa de inteligência invulgar de humor
finíssimo, o "Mestre Jorge" como respeitosamente era tratado, contava
histórias das suas andanças sem fim, do Minho ao Algarve, das Beiras Interiores
e Beiras Litorais.
Em 1940, foi chamado por Carlos Roeder
para dirigir a montagem do que então se transformou nos Estaleiros São Jacinto,
sendo seu sócio fundador.
A sua argúcia, capacidade de trabalho,
bondade de princípios e humor repentino, fizeram dele um dos técnicos mais
considerado no sector e um cidadão respeitado e lembrado com saudade, por todos
quantos tiveram o privilégio de com ele privar.
Tratava e educava os trabalhadores como se
fossem seus filhos.
Vestiu-os, calçou-os, ensinou-os, e
alguns, então miúdos, dizem hoje com algum prazer, que lhes chegou a
"roupa ao pêlo".
Quando alguém faltava a um compromisso,
dizia com graça e sem rancor "Promessas não são correntes de ferro".
Ao excesso de confiança posto na execução
dum segundo trabalho, lembrava: "Duas coisas iguais não são a mesma
coisa".
Podia dar-se ao luxo de alardear a
simplicidade só permitida às inteligências superiores.
Teve uma vida cheia. Foi feliz e fez as
pessoas felizes. Nada o desmoralizava, nem a morte. Vive certamente com todos
os que o conheceram.
Sempre habitou dentro do Estaleiro desde a
sua fundação e aqui faleceu aos 20 de Dezembro de 1977.
João dos Santos
Também alentejano, começou a sua
actividade na organização ainda muito novo, nos escritórios da Metalurgia
Alentejana, como paquete.
Órfão de pai e muito pobre, foi casapiano
em Beja, onde aprendeu as regras de humildade e austeridade próprias daquela
organização. Trabalhando de dia e estudando de noite, foi aprendendo conhecimentos
firmes de contabilidade.
Quis o destino que a morte tivesse levado
o então chefe de escritório da Metalurgia Alentejana, na época, uma das mais
prestigiadas empresas do sul do país. Logo Carlos Roeder se viu envolvido numa
teia de pedidos e de influências, no sentido desse lugar vir a ser ocupado por
pessoa importante.
Após vários meses de reflexão, Carlos
Roeder com o seu espírito arguto costumeiro, perguntou quem havia mantido a
organização financeira e contabilística da empresa durante aquele período.
Responderam-lhe: "Um miúdo de 16 anos".
Começando os Estaleiros São Jacinto nos
anos 1944/45 a ter alguma projecção nacional e havendo necessidade de
consolidar o sector administrativo da empresa, Carlos Roeder, convida então
João dos Santos a transferir-se para Aveiro, onde toma conta de todo o sector
administrativo, financeiro e contabilístico dos Estaleiros.
De elevados princípios éticos e morais e
dotado de uma tenacidade e austeridade ímpares,cedo consegue impor uma linha
de conduta financeira, que lhe valeu a alcunha de "Salazar dos
Estaleiros", que ainda hoje perdura, passados que foram 10 anos da sua
morte.
Procurador e servidor fiel de Carlos
Roeder, idolatrou-o como a um pai que não teve.
Ocupou os cargos de administrador dos
Estaleiros São Jacinto, Metalurgia Alentejana, Cerâmica Aveirense, Estaleiros
Mónica, Frapil, Nortenha e Navalria.
Ninguém o viu alguma vez adquirir objectos
de uso pessoal, ou enaltecer bens materiais.
Nos períodos maus pós 25 de Abril, jamais
pactuou com o granel instaurado. Não se demitiu na altura, por entender ser
cobardia abandonar a empresa nos períodos difíceis. Logo que a vida da firma
estabilizou, pediu a sua demissão.
Dizia que a rectidão de princípios sempre
venceria. E venceu. Os trabalhadores do Estaleiro, com surpresa geral, não
aceitaram que saísse. Conjuntamente, as comissões de trabalhadores e sindicais
com aquela dignidade que sempre nos uniu durante estes 50 anos, souberam-no
vergar pela humildade.
A morte levou-o subitamente a 10 de Junho
de 1980.
Vale Guimarães
O único homem público que passou por estes
Estaleiros.
Político de reconhecidos méritos,
Governador Civil de Aveiro em dois períodos diferentes, foi também o grande
impulsionador dos congressos da oposição ao regime, efectuados em Portugal
antes do 25 de Abril.
Consentiu-os e defendeu-os. Sentia vaidade
nessa exclusividade.
Licenciado pela Universidade de Coimbra,
tornou-se administrador dos C.T.T. onde desempenhou funções no pelouro do
pessoal.
Acérrimo defensor do distrito de Aveiro,
fez parte de uma geração de homens políticos que se notabilizaram na defesa dos
interesses da região.
Recusou lugares ministeriais por entender
que a sua vocação e os seus conhecimentos seriam úteis às gentes da sua terra.
Propagava o "aveirismo" quase
com patriotismo.
Jamais alguma autoridade pisou o chão do
seu distrito, sem que estivesse presente nas suas estremas.
Recebeu Humberto Delgado com honras de
Presidente da República e a dignidade que lhe merecia qualquer candidato ao
cargo. Impediu, nessa altura, nas fronteiras do distrito que a policia de
Coimbra viesse controlar a situação. Esta atitude valeu-lhe de imediato, a
demissão decretada por Salazar.
Orador de méritos incontestáveis,
conhecedor profundo da História de Portugal contemporânea, era um admirador de
José Estevão o qual procurava, sempre que possível, citar. Pensa-se que terá
morrido com mágoa de nunca ter sido convidado para ocupar um lugar no
Parlamento, onde certamente, melhor teria realçado as suas qualidades de
tribuno exímio.
Nos últimos dias da sua vida foi
mandatário da campanha presidencial de Mário Soares no distrito de Aveiro,
facto que muito terá desgostado o Presidente do partido que apoiava e também
candidato às presidenciais, Dr. Freitas do Amaral.
Liberal de princípios e de consciência
livre e independente, entendeu que Mário Soares seria o candidato melhor
colocado para defender os interesses do país. Dizia que uma vitória de Freitas
seria susceptível de conduzir a confrontações, dada a relação de forças
existentes em Portugal.
Travou conhecimento com Carlos Roeder, na
época em que o Estaleiro estava a ser preterido por razões políticas. Na
verdade, tratava-se da maior injustiça, pois nunca algum dirigente desta
empresa pensou noutra coisa que não fosse trabalho.
Vale Guimarães, na altura Governador
Civil, não teve quaisquer dúvidas em interceder junto do Governo.
Carlos Roeder jamais esqueceria tal
atitude. À hora da morte incumbiu-o especialmente de presidir aos trabalhos de
preparação da Fundação Roeder e nomeou-o seu Administrador vitalício.
Foi presidente dos Estaleiros São Jacinto
desde a morte do seu fundador, até ao seu próprio falecimento, tendo sido
também Presidente da Navalria.
Homem estruturalmente bom e de altos
princípios morais, tentou ajudar todos quantos o solicitaram. Poucos aveirenses
haverá que não tenham recebido os seus favores. Pagou dívidas que não lhe
pertenciam, empenhou-se e vendeu valores para cobrir despesas alheias. E quando
lhe deveriam estar gratos, afinal não havia amigos. Havia sim, gente com muito
medo de juntar o seu nome ao de Vale Guimarães, quando em muitos casos, fora
ele a dar-lhes o nome.
Talvez por complexo, talvez por ser
Presidente e não querer comprometer a empresa, nada solicitou aos Estaleiros a
este respeito.
Mas a gratidão e a dignidade são valores
que esta empresa sempre defendeu. O seu bom nome foi merecidamente preservado
para sempre.
Para que fique na história, nos finais da
década de 70, Vale Guimarães pagou todas as dívidas e deu aos seus
trabalhadores todas as acções duma tipografia de Lisboa, onde nem sequer tinha
interesses materiais. Apenas por haver em anos anteriores, cometido o
"crime" de pedir a alguns amigos que subscrevessem capital na mesma,
para fazer o favor a outro amigo, não quis ver o seu nome envolvido em qualquer
manobra política.
Mesmo assim houve quem o incluísse na
lamentavelmente famosa lista da "Matança da Páscoa".
Recebeu a Medalha de Ouro da Cidade de
Aveiro.
Faleceu honrosamente a 22 de Fevereiro de
1986.
O Senhor Presidente da República esteve
presente no seu funeral.
Henrique Moutela
...
Sem comentários:
Enviar um comentário