terça-feira, fevereiro 19, 2013



POSTAL nº 4




S Bartolomeu :dia do diabo à solta.

Nem o despertador precisou de me chamar, nem o galo de cantar; parti no horário em que sabia, apanharia as «faladeiras».  E a meio do percurso, lá vinham as duas simpáticas pescadeiras, lestas e ainda desempenadas das pernas. Notei que vinham a gesticular fortemente, parando de vez em quando, especadas  na marginal.

Máquina a meia força, fui-me aproximando. Pàra a máquina!...,devo ter pensado.E fiquei a pairar, à espera que as duas,a Zefa e a Tibéria se aproximassem. E leme a bombordo, atraquei ao de labaró, e dei os louvados:

-Louvadas Vossorias, gente fina desta praia velhinha; mas ainda bonita e asseada,  como o são as sua cachopas .

_ Ah seu endrominador, você não perde tempo para,ainda não ter passado a mão da barca e já  está na mangação,seu camanduleiro.    

- Eh Ti Josefa essa de camanduleiro é que nunca ouvi. Astão o que é lá isso? Perguntei interessado no léxico vernáculo.

-Ai não sabe ?!...pois..  pois.. eram os rapazotes enganadores .Ou as beatas na camandula: de terço de contas grossas à vista, as banguinas a fingir que iam a rezar, aquelas calamantronas. O que elas estavam era a fazer horas para irem ao confesso, onde o Padre Horácio lhes despertava a cocegueira  na  cricalhada. Que eu diga era um grande rascoeiro.Que diga-se dava abêgo a todas, astifazendo-lhe as necessidades. De boa boca ...tudo o que vinha á rede era peixe, desde que tivesse guelra avermelhada. Não havia beata, saltarina ou cantadeira de missa, que lhe escapasse. Trambolhão por trambolhão,ia-se o paraíso.Que a Eva também era danada p’rà cambalhota. E pr’a homem e mulher  mais saborosa  brincadeira, deus não inventou. Disques. 
-Ah mulher vê lá como falas aqui com o senhor. És mesmo uma desaussernada .  Lingua ruim e envenenada. Emboitas qualquer uma com a tua língua de vinagreira. Olhe aqui amigo: olhe c’a vida na companha não era só um enxogalho de má língua.Havia momentos de inquisilar a alma .Ó!...  Zefa alembras-te daquele dia do S. Bartolomeu ? Já ouviu falar neste santo?
-Olhe que sim ,respondi. Quando era rapazinho,nesse dia, as mães nem nos deixavam sair de casa. Diziam que andava o diabo à solta…Ainda me lembro que num deles, andava um tenente muito  emproado, muito   esturto, no cavalo, ali  perto da antiga esplanada, a mostrar-se ás garotas (que olhavam mais para o cavalo que para  o pelingrino ).O animal  espantou-se,tomou o freio nos dentes,  e foi como trovoada  por ali acima até casa dos Taveiras. Estacou; e vai o  pavante «tenentezeco» avoou e aterrou no Bico, no meio do lodaçal, emboitando a farda toda.
-Mas olhe c’a até andava o raio malino à solta ,desembolado. Eu conto-lhe:
(…) no dia desse santo ,era costume não se ir ao mar, pois  diziam, acontecia sempre que o pecadito fazia das dele. Mas naquele ano as semanas tinham sido tão más que já havia fome entre as gentes. O arrais Ti Cruz reuniu a companha e botou faladura:
-Eh …gente :eu ando desaquietado:  esta vida está de morte. E morrer por morrer, mais vale morrer no meio daquele estipôr, que por aqui, á fome. Por isso eu quero ver se tenho homens da minha ógalha.Ou meninas virgoleiras,  com medo de serem espetadas com a padela. .Maneiem –se os que querem embarcar. Fiquem os inxuns  a rezar ao belzebu.
-Aqui me tem Senhor, avançou o Bernardo» rompendo a fila dos brejoeiros  hesitantes. Cabeça alevantada, peito firme, alto como uma torre, forçudo capaz de erguer um mansarrão pelos gorgomilhos,olhos verdes da cor do mar,quando manso. Mas de onde saíam chispas quando irado. Ao verem o Bernardo , o Carlos ,o «Negrote»,o «Ranhoso»…e outro e outro… deram passo em frente.

-Ti Joana, encaneire o pessoal,e vamos lá com Deus, que ele nos cubra com o seu divino capote,vamos dar lanço  nem que seja para o escabeche:- disse o ti Cruz para a «arraisa» Joana, a chefa da companha em terra..
Foi ordem que provocou uma restolhada. Redes pra dentro, sacada à borda  desenvencilhada,mangas enroladas  a que se juntou o cálão e a mão da barca. Chama-se o abegoeiro. Que trouxesse quatro  juntas de hercúleos  bois, pois  há pancada rija; e meter o meia lua a vogar,obriga a que a muleta vá até à borda, e que os bois,enfeixados nas arnelas, metam barriga mar dentro para dar impulso.E assim  ajudar  a embarcação a boiar. A entrar mar adentro..
E foi então, quando as duas juntas estavam com água pelos ruços, borregando em  ir mais dentro, aguentando  a vergastada  e o aguilhão da  vara inclemente que lhe zurrava nos costados, que uma vaga atravessa o meia lua. O Arrais grita num vozeirão:
-Rema !  Riba….Ó…Ó …riba…Eh! raios …diabos…  riba para a vaga …Seus langões.  Dai força aí no mieiro, ou ides  hoje todos para o inferno das profundezas .
Numa arrancada, mistura de vontade com medo,o barco dá um esticão para aproar à vagalhoça. Mas presa à embarcação, a junta  de bois de estibordo é arrastada com a ré da embarcação. E eis que os bois  perdem pé .Cabeça e cornadura de fora, tentam ferozmente desenvencilhar-se do cordame que os prende à embarcação. Num repente, vê-se o Bernardo astirar-se à auga,e com a navalha libertar, do barco e do cabeçalho,os animais. E  nadando para terra,resoluto ,entrega a ponta   da corda ao pessoal,que água até ao pescoço, alam o pobre animal para terra.
-E o outro?  Você sabe lá (?!),diz a Zefa inquirindo-me…
-Pois e outro Ti Zefa …..adianto, pronto a ouvir o resto deste quadro vivo ,expressivo, luta de gigantes com o mar,
- Pois: a Ti Joana mulher d’um carago, nadadora exímia, tinha-se atirado  e saltara para os costado do boi que resfolegava .E atirando –lhe o saiote preto para os olhos, filada ao cornígero animal, forçara-o a virar-se para terra. O animal sentindo areia debaixo das patas pareceu ganhar alento. E zás que ala tarde. Recuperado «pé»,ajudado pela vaga, e pegado pelos cornos pela Joana, o animal desenvencilha-se do mar e parte em corrida  resfolegante pelo areal adentro. Vai por ali fora e...De repente: escafedeu.
 Estaca, e a boa arraisa Joana voa e aterra de barriga no areal. Só que o saiote e fralda, ficam espetados nos cornos do boi. E a Joana esparralhada no areal, mostra o alvo traseiro. Bonito e redondinho. Firme, parecia montanha amaciada por mão divina.
-E quereis saber Senhor (?): entra a Tibéria de quarto.Pois todos aqueles zamparinas , gadagem que cobiçavam tudo que fosse mulher, viraram a cara (e os olhos !) libertando a Joana de córar de vergonha, ao ver-se exposta como a sardinha na sacada.
-Todos?. Todos não, diz a Zefa ,com um riso malino na cara.Não !.... o Bentinho «Cagaréu», que diariamente mirava guloso  aquela mulher tão liró,parecia  hipnotizado ao ver a  meia lua da Joana tão ajeitadinha e torneadinha. E ògadinho não tirava os olhos daquele quadro que parecia um retábulo real.Até que a voz da Joana trovejou:
-Que estás a olhar, pelintra? Gálico (!), nunca viste o  traseiro da balcória da tua mulher ? queres chari-lo? .Anda esculhambrado,  astreve-te  que eu filo-te pelo gasganete e amanho-te a tripa que tens entre pernas para escaço.
-AH chopa :morrendas se nao falendas.Que tinhas tu de comentar que Bentinho viu o «rabinho» de anjo da Ti Joana?   òspodias  ter terminado sem teres emboitado a estória. Assim : quando a arraisa Joana se pôs de pé,já o meia lua atravessara o mar quebrado e fazia emposta  à procura do cardume ….


 

SF .

 

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